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Texto da entrada (ID.1947)

Chronica Scien[t]ifica

A proposito de uma recente invasão cholerica

A Europa viu com justificado receio a cholera invadir a Russia ha dois annos e, posto que o avanço dos flagelos já não cause nas modernas sociedades o movimento de panico, que se produzia vivamente nellas, ainda no meado do seculo passado, ao aproximar-se uma epidemia assoladora, não nos podemos furtar a um tal ou qual sobresalto [sic] que, em tempos correntes de uma organização sanitaria suficientemente bem armada e dirigida, representa apenas um gesto instinctivo de defesa, a que se sucede de ordinario, mercê do fatalismo a que se acolhem os bons meridionaes, uma quietação de indiferentismo, de descuido, que pode arrastar ás vezes consequencias muito desagradaveis, no ponto de vista da segurança hygienica social.

De ha dois annos que os hygienistas seguem com curiosa atenção o andamento regular de uma irradiação cholerica, que muito devagar, progressivamente, se encaminha atravez da Europa. Em 1908, por ocasião da feira de Nidjni-Novgorod, começaram a manifestar-se numerosos casos de cholera nas hordas asiaticas, que todos os annos se aglomeram nesta cidade da Russia oriental. Estava por esta forma estabelecido o fóco d’onde a molestia se havia de propagar, aproveitando nos diferentes pontos do imperio moscovita as excelentes condições de difusão, que lhe oferecem as suas populações pobres, densas, incultas, miseraveis, que na sua ignorancia e na sua hesitação supersticiosa não teem a força moral nem os meios racionaes e praticos de evitar ou impedir a invasão do mal.

De anno para anno a cholera tem avolumado em diferentes partes da Russia, especialmente no sul e em S. Petersburgo, com uma cifra de mortalidade bastante elevada (entre 25 e 50 por 100).

D’entre os varios flagelos que possivelmente nos visitariam, não se sabe bem porque, a cholera é o que mais faz estremecer as populações, talvez por um esforço de imaginação, que relembra os factos passados em outras eras, não muito longe, na primeira metade do seculo passado, dando origem a narrativas dramaticas e comoventes, que a tradição ainda conserva. Perigos mais iminentes costumamos, pela sua vulgaridade, desprezal-os, com a indiferença familiar com que se encaram as ocorrencias diarias dos mesmos acidentes. A tuberculose, a febre typhoide são endemias muito mais devastadoras, na constancia da sua acção, perante o abandono dos meios energicos que a hygiene aconselha para a debellar, na falta de condições sociaes que aumentem a resistencia individual e colectiva contra essas doenças, verdadeiramente terriveis.

É uma cousa definitivamente assente, perante as estatisticas de varias nações, que as doenças infectuosas endemicas causam uma perda maior de vidas e prejudicam economicamente mais do que esses temidos morbos exoticos, que se limitam a ceifar por junto, de tempos a tempos, alguns milhares de precarias existencias, nos bairros mesquinhos, insaluberrimos das velhas cidades.

Conta-se que em França a mais mortifera epidemia cholerica, a de 1855, arrebatou cerca de 145:000 pessoas, algarismo sem duvida espantoso e dos mais elevados que as estatisticas registam. Comtudo [sic] é inferior ao da mortalidade annual pela tysica neste paiz e que orça por 150:000 obitos todos os annos.

Desde o final do seculo passado, pode dizer-se, dos ultimos quarenta annos, o conhecimento dos processos de invasão das epidemias de cholera, a noção exacta da natureza da molestia permittiram o estabelecimento de meios de protecção melhor orientados pelo espirito scientifico moderno, apoiado para o caso nas fecundas descobertas da bacteriologia, em que resplandecem os nomes aureolados de Pasteur, de Koch, de Behring e de outros. Medidas hygienicas e prophylaticas bem entendidas determinaram a vigilancia das regiões contaminadas, o saneamento das cidades populosas e tratam de refrear immediatamente, desde a aparição do primeiro caso, a marcha das epidemias. Deste modo a ultima que houve em França victimou apenas uma dezena de milhar proximamente de creaturas.

Apesar da energica defesa do resto da Europa, era facil de prever que mais alguma irradiação se fizesse, em vista dos progressos da epidemia na sua parte oriental. Factos anteriores demonstram efectivamente que, quando a epidemia se não extingue rapidamente nesta região e tende a penetrar na Allemanha, a zona ocidental vem geralmente a ser atacada. Esta previsão parece agora verificar-se em presença da recente aparição da cholera na Italia, embora ella possa ter uma procedencia bastante diversa da que se julga, perante o actual estado sanitario europeu.

A cholera é endemica na India; tem o seu principal foco original no Ganges, numa região excessivamente acumulada de população, vivendo em pessimas condições, mal alimentadas, sem a minima precaução relativa ao bem estar physico, entregue ao fanatismo e á superstição mais infrenes. As repetidas peregrinações, em cumprimento de votos e praticas religiosas, adensam prodigiosamente esses focos de propagação epidemica, onde o bacillo virgula encontra uma exaltação de virulencia consideravel.

Dão-se ahi numerosos casos fulminantes, partem d’ali funestas irradiações. Á partida das caravanas e dos peregrinos torna-se o perigo mais grave. A deslocação destes retalhos de populações infectadas vae levar seguramente ao longe os germes da doença, que se propaga lentamente, atravez de regiões immensas, collocando em perigo exactamente as fronteiras terrestres, ordinariamente as menos efficazmente protegidas.

A peregrinação de Meca, reunindo milhares de crentes mahometanos, que se espalham depois por varios pontos da Terra, é um dos centros de irradiação mais importantes. Por isso as nações occidentaees teem a sua vigilancia constantemente assestada sobre aquelles lugares.

Em geral, pode-se dizer que a epidemia segue as grandes vias comerciaes, por terra e por mar. O passo vagaroso das caravanas traça por assim dizer o seu caminho e são por isso conhecidas as suas linhas de penetração. Entra com aquellas pelos centros de negocio, nos mercados populares, nas grandes feiras, em Kashgar, Yarkhand, Novgorod, Orenburgo, Astrakan.

Pelas vias maritimas ella espalha-se desde a India, pelo estreito de Malaca, ganha as ilhas da Sonda, as Filipinas, entra no Japão e na Coréa, vae a Hong-Kong, a Cantão e a Pekim e vem por terra e por mar para a Europa.

Importada por esses dois lados em Africa reina no Egypto, que já tem assolado largamente e derrama-se na Tripolitana, na Argelia, em Marrocos, na Senegambia, tornando-se tambem por este lado ameaçadora para a Europa.

O risco da difusão aumenta, é claro, com a rapidez e multiplicação das communicações. Em contraposição, a biologia do seu agente está hoje bem estudadada [sic], assim como os meios eficazes para desviar ou travar a progressão invasora. Não deixa porém de constituir entretanto uma ameaça constante, que obriga as auctoridades sanitarias a uma [sic] álerta ininterrupta. Afirmar que, escudados por esta guarda efectiva, ficamos absolutamente ao abrigo de qualquer ataque, seria uma especie de temeridade optimista.

A prophylaxia das nações contra as grandes epidemias exoticas não é ainda hoje cousa facil. Se a entrada das barras pode achar-se suficientemente garantida, se os portos estão bem acautelados pelos seus chefes de saude, regularmente informados da evolução epidemica ao longe, não acontece do mesmo modo nas raias, muito mais extensas e portanto dificeis de vigiar, atendendo particularmente aos diferentes modos como podem ser transpostas por viajantes suspeitos ou portadores de molestia infectuosa, sem se dar por isso e á quantidade de mercadorias e bagagens que passam diariamente por ellas e que seria impossivel beneficiar por completo.

A defesa das populações urbanas pode ser instituida com acerto e mantida por uma policia sanitaria bastante disciplinada, mas já não é assim a respeito dos pequenos centros ruraes, onde é mais rude a tarefa de fazer entrar os beneficios da hygiene.

Aos governos compete decretar as medidas administrativas que devem impedir as invasões epidemicas e ás municipalidades cabe uma responsabilidade mais circunscrita, porem mais delicada, na execução de medidas prophylacticas, que coloquem as cidades e as villas a coberto das invasões epidemicas. É principalmente com estas ultimas entidades que os cidadãos devem colaborar, procurando cada um na sua esphera de acção acatar e fazer respeitar os principios salutares e praticar os preceitos hygienicos e regulamentares, tanto individualmente, como no que se refere á colectividade.

J. Bettencourt Ferreira.


Referência bibliográfica

J. Bettencourt Ferreira - "Chronica Scien[t]ifica / A proposito de uma recente invasão cholerica" in Diário de Notícias de 24 de Agosto de 1910, nº. 16085, p. 1 (c. 4-5). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=1947.



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