Assumptos do dia
Questões medico-sociaes
CIII
A revivescencia dos germens da colera
O dogma classico não tem querido admittir que a colera se universalise, senão invadindo, marchando, avançando sempre …
Enthusiasmou-se com o Judeu Errante, de Eugène Sue, e photographou do romance para a pathologia esse personagem egualmente funesto e errante. Ora, isto, seria unico e desconhecido em pathologia. É, portanto, pouco de receber; briga mesmo com a extraordinaria faculdade de expansão, com a rapida generalisação da colera, mais rapida ainda do que os nossos mais celebres meios de communicação, e combate e compete até com os seus attributos essenciaes. Conceber que uma doença nascida em um ponto restricto do mundo, se precipita no espaço irradiando para todas as direcções, percorrendo áreas immensas, e devasta simultanea ou successivamente as mais distantes e remotas localidades e despovoa o mundo, sem se domiciliar, sem lançar enredadas e seguras raizes em parte alguma, sempre somente de passagem e com o pé no estribo, é ver um só magro factor – a importação – mas, que não pode ser unico na etiologia das epidemias da colera.
Ás vezes, as epidemias nem sequer seguem a tal ordem regular, atacam por zonas, dão saltos, deixam localidades indemnes muito perto de outras investidas com grande sanha, e tudo isto e mais factos do mesmo genero estão a protestar contra esse abuso da importação como origem unica das invasões de tal epidemia. Pois, a doutrina da importação exclusiva e da disseminação de proche en proche pretende ainda assim ser absoluta e universal apezar da sua lamentavel insufficiencia para explicar o grande numero de poussées epidemicas de colera que se teem registado por esse mundo fora. Então, não haverá mais nada, nenhum outro facto para o caso, e temos por força de continuar com céga fé nas crenças e nas impressões que nos transmittiram na nossa primeira educação medica?
Não se nega o contagio directo ou indirecto, nem a transferencia de germens de um ponto para outro, nem o papel illimitado que os porta-bacillos desempenharão na diffusão da colera, mas, a nossa razão resiste, em muitos casos, ás pretendidas e falsas importações novas que se vão buscar para explicar explosões epidemicas que devem estar fóra d’essa etiologia soberana e absoluta. Porque não serão esses casos de explosões successivas, com a mesma physionomia e com o mesmo modo de accionar, antes e pelo contrario a volta á actividade pathogenea de germes abandonados nas localidades em invasões iniciaes, e que, encontrando condições locaes e individuaes propicias, revivem e se desenvolvem sur place?
O absolutismo da importação explica apenas um numero muito reduzido de epidemias; esta noção de braço dado com a da revivescencia dos germens colericos e a dos porta-bacillos pode explicar todas; qual será então mais sensata e mais plausivel?
Bem longe está de ser desproposito o concebimento de que nem sempre a epidemia entra por uma porta que se lhe deixa aberta e que se deveria ter sabido fechar; compreende-se na pathologenia das epidemias – ainda cheia de segredos – apezar da jactancia dos vaidosos da sciencia, que haja, em dadas circumstancias [sic], manifestações autochtonas de cholera, ligadas á precedente epidemia, e que teem de encadeiar-se [sic] com a epidemia futura.
Pois, não succede assim com outras doenças infecciosas, o sarampo, a variola, por exemplo?
Teem-nos dito os da origem sempre exterior das poussées epidemicas da colera, que o seu agente se conserva mal nos meios ambientes, e que a sua vitalidade e virulencia carecem de constante transito pelo organismo humano.
A epidemia que renasce depois de uma certa intermissão é sempre nova, tem sempre por causa uma nova remessa da sua semente.
É o que tem estado consagrado, mas, que póde muito bem não ser assim; há factos authenticos induzidores de que o germen póde viver proximo de nós, amadornado algum tempo, e reanimando-se em virtude de causas locaes e individuaes que o afinem e espertem. Como de incontestavel revivescencia, cita Besnier as grandes epidemias francezas de 1854, 1873 e 1892. E, seria um nunca acabar. Depois, a possibilidade de cultivar o bacillo da colera em meios nutriticios apropriados por um certo tempo – ou isto não é verdade? – não constituirá fundamento para abonar, em condições propicias, a sua conservação no solo ou nos meios ambientes por um periodo duradouro?
A longevidade do germen colerico no solo, é, pois, recebida como plausivel, com a particularidade de que este facto, aproveitando ao individuo, compromette á la longue a sua faculdade de multiplicação e virolencia. Tambem é racionavel. Só assim se percebe porque estão os annaes da epidemiologoia cheios de casos inexplicaveis e reversos á doutrina que tem reinado.
Quem se der ao trabalho de os consultar – que estafa, seria citar tantos factos! – fica logo nutante e desconfiado, pelo menos, de que este factor tem egualmente de ser legalisado na sciencia.
Os mais illustres epidemiologistas enveredam hoje pelo ecletismo no modo de vêr esta questão; póde ser revivescencia; o Proust, por exemplo, não repellia a idéa da colera semi-naturalisada. Ou o Proust – o Fauvel, já os senhores o escorcharam – não entendia nada de pathogenia das epidemias?
Tambem o dogma official nos diz que a colera segue as correntes humanas e mede precisamente a rapidez da sua propagação pela rapidez dos nossos meios de communicação.
Por terra, nunca anda mais depressa do que o caminho de ferro; por mar, nunca se adianta aos grandes vapores. E, é verdade.
Pois, com as epidemias de Paris, dá-se o caso curioso que irradiando a colera de um ponto contaminado da peripheria para aquella capital quasi sempre ahi chegou mais depressa quando não havia ainda caminhos de ferro, do que no tempo em que a França estava já dotada com a sua rede ferroviaria.
Ainda a circumstancia de haver localidades, grandes ou pequenas, que possuem uma immunidade permanente ou temporaria para a colera, quaesquer que sejam as condições de perigo que as envolvam, como Lyão e Versailles assim consideradas, constitue mais um dos muitos segredos de epidemiologia da colera, em antagonismo evidente com o principio da marcha do Judeu errante, de proche en proche, de terra em terra.
O que diz a isto a bacteriologia? Nós diremos não poder ser ella o oraculo exclusivo da interpretação das epidemias, e pedimos desculpa, não venha por ahi o fragor de algum trovão.
A velha doutrina da origem sempre extrinseca das epidemias de colera, vae sendo assim verrumada pela concepção da origem tambem intrínseca.
Sómente, os espiritos opiniaticos lhe fazem ainda caratula feia. Se, porém, a doutrina da revivescencia não é de receber, então, o caso de um só doente, desembarcado n’um porto, ser capaz, pelo seu contagio directo e indirecto, de contaminar todo o continente europeu e mais ilhas adjacentes, assume as proporções de um caso phantastico e monstrifero. O contagio, sem mais nada, não pode ter um impulso tão expansivo e tão «inforciato». Esta doutrina que, para explicar todas as invasões da colera, vae sempre á India buscar os seus germens, dá vontade e occasião para a gente a mandar á India, tambem.
As idéas para aqui trasladadas, não são de aradura minha, nem tenho auctoridade para as sanccionar, mas, perfilho-as com a convicção de quem, estudando esta doença ha mais de 25 annos, tem recolhido muitos factos e muitas observações no sentido sobretudo defensivo.
Em conclusão, quem mandar vigiar a fronteira e o transito internacional por mar e por terra, vele do mesmo modo pela hygiene, local e individual dos ameaçados pela colera, não só para o combate propriamente da epidemia, mas ainda para o caso da sua possivel adaptação e futuras aptidões pathogeneas.
E mais ainda se deverá cuidar do temeroso perigo dos porta-bacillos, o maior de todos os perigos na especie.
Pensa-se em fazer alguma cousa n’este sentido ou deixar-se-ha correr o marfim? O que está feito é util, mas não prende tanto como é necessario com attributos essenciaes da doença e sua defeza moderna.
G. ENNES.
G. Enes - "Assumptos do dia / Questões medico-sociaes / CIII / A revivescencia dos germens da colera"
in Diário de Notícias
de 27 de Agosto de 1910, nº. 16088, p. 1 (c. 1-2). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=1949.