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As minhas campanhas contra a colera (1884-1886 – 1890-1892)

No dia em que estou a escrever estas linhas, faz precisamente 26 annos que o conselho de ministros – era presidente do conselho, Fontes, e ministro do reino, Barjona – me encarregou da defesa do paiz contra a invasão da colera pelas fronteiras de Elvas e Villar Formoso, nomeando, em seguida um outro medico, o fallecido dr. Cunha Bellem, para o desempenho de egual commissão nas fronteiras de Marvão e Valencia. Logo, depois, ficámos ambos, como inspectores dos lazaretos terrestres, incumbidos e com funcções da mesma graduação, não só da organisação decretoria e exercicio desses estabelecimentos, mas tambem de todos os trabalhos para presevar [sic] e premunir o paiz contra a entrada da colera, manifestada primeiro na Andaluzia, e alastrada depois para todas as provincias da Hespanha, com excepção de uma apenas. Esta equiparencia de esforços communs e conformes, manteve-se na inspecção dos lazaretos já criados nas testas das linhas ferreas internacionaes, e na organisação dos postos de vigilancia e observação, nos entroncamentos da nossa rede ferro-viaria, por toda a temporada cholerica até 1886, e mais tarde em 1890; ficando, deste anno em diante, unicamente na superintendancia dos serviços de defesa da fronteira o medico que faz agora esta rememoração. E que a faz com a consciencia de que se muitos o excederiam em saber e experiencia, nenhum lhe levaria a dianteira em desvelo e desejo de acertar.

Confiados, exactamente como na hora presente, na defesa que a Hespanha nos garantia pela policia quarentenaria rigorosa dos seus portos e nos Pyreneus, fomos sobresaltados [sic] nos primeiros dias de [sic] mez de Setembro de 1884 pela noticia de que a terrivel epidemia explodira na Andaluzia. Com intensão e gravidade.

Verdade é que a nossa illusão não passava de uma tenue e enganosa sombra; a Hespanha estava desarmada e desguarnecida; assim, por exemplo, dos apparelhos mais potentes e mais consagrados para os terrificos insultos da colera, tinha-os apenas nos grandes centros, mas … em photographias.

Não sei como aquella nação tem hoje as suas tropas sanitarias adextradas, nem qual seja a qualidade da grossa artilharia que guarnece as circumvalladas fortalezas da sua defesa contra as epidemias; é natural que tenha melhorado muito, mas, isto de a gente estar atida e acostada ao visinho para que nos vigie e guarde a porta, não me parece da mais cauta prudencia, mormente n’uma doença, como esta, d’esse damnado microbismo latente, que se transmitte e propaga por individuos com todos os attributos da saude.

A primeira defesa planeada e executada foi pelos cordões sanitarios e lazaretos terrestres, ou, como quem diz, pelo systema do muro e portas. Improvisaram-se lazaretos nas testas dos caminhos de ferro internacionaes: em Elvas, Marvão, Valença e Villar Formoso. Este ultimo apenas era uma miniatura, attendendo a que a linha de Salamanca estava ainda atrazada, e até suspensa a sua construcção na épocha do perigo colerico no outomno de 1884.

A estação da Barca d’Alva foi fechada em rasão de não ser possivel organizar-se ali a installação de um lazareto, e ainda pelas condições insalubres da localidade. Era possivel recuar para Almendra a situação do lazareto, o que offerecia menores difficuldades de ordem material, mas, o clima se não era egual ao da Barca d’Alva, era talvez… ainda mais doentio.

Na temporada, a que me refiro, houve tres momentos de angustia. Foi na hora tumultuaria, quasi de panico, da nascença dos lazaretos de fronteira; na occasião em que a colera penetrou em Madrid, e quando se manifestou a epidemia colerica na Figueirita, a dez minutos de Villa Real de Santo Antonio, por transporte fluvial.

Esta defesa dos rios que nos separam do paiz visinho, já difficultosa entre Valença e Tuy, entre Elvas e Badajoz, entre Valencia de Alcantara e Marvão, mais difficil se torna na fronteira do Algarve. Porque o Minho é pouco largo entre as já citadas povoações: Valença e Tuy; porque o Caia é pequeno e o Sever é delgado, mas, o Guadiana, junto da sua foz, é grandioso e arduo para fiscalisar e policiar.

O que se fazia em Villa Real de Santo Antonio contra as procedencias de Ayamonte, quando lá chegámos consistia em uma especie de quarentena maritima, effectuada por um confuso agrupamento de barcos accumulados de tripusantes [sic] e passageiros, onde não havia asseio, nem hygiene, nem alimentação, nem garantias algumas de isolamento, nem medico para inspecções, nem estabelecimento hospitalar. Construiu-se, então, mais um lazareto terrestre em que os hospedes chegavam pela via humida. Em verdade, todo o local, para esse fim, era mau, ou o sapal ao norte ou a praia a oeste. Preferimos esta por, ao menos, ser melhor hygienicamente, e fomos construir na areia.

A colera da Figueirita, junto de Ayamonte, é o transe tragico d’esta temporada colerica que se extinguiu com os rigores do inverno de 1886.

Grassava, em outubro de 1885, com viva intensidade a colera na Figueirita, na Canela, nas povoações da ilha Cristina, em frente de Villa Real de Santo Antonio. Muitos pescadores portuguezes ali residentes, supplicavam que os deixassem voltar para o Algarve, apavorados da epidemia, soffrendo miseria e até fome, e padecendo, além de todos estes males, do da triste ausencia das suas familias e humildes lares.

A Hespanha, por seu lado, inistia pela repatriação dos forasteiros que representavam, pela sua accumulação e pelo onus que lhe trazia, uma carga e um perigo para a hospitalidade hespanhola.

Soccorreram-se então largamente estes individuos, emquanto [sic] tudo se preparava para os receber, sob severas medidas sanitarias, através do lazareto de Villa Real, o que se fez por turmas; e o Algarve, como o resto do paiz, manteve-se indemne de colera. Foi uma asperrima tarefa, mas de pleno exito.

Já em agosto do mesmo anno, por occasião da repatriação dos ceifeiros, se déra caso parecido, com a differença de que Badajoz estava indemne, mas, receiosa [sic] da accumulação de alguns centos d’estes trabalhadores, que queriam entrar em Portugal, e cujo aceio [sic] e outras condições hygienicas eram de todo o ponto lastimosos.

Fez-se a repatriação, sem o minimo perigo, atraves do lazareto d’Elvas, em um vasto acampamento perto dos olivaes da Fonte Branca, na Tapada do Penedo. Mas, que de cuidados para regular aos acampados a questão de alimentação, de agua, de exgotos!

Com a estação fria extinguiu-se a colera na Europa e em Hespanha, e a epidemia não entrou em Portugal, a não ser no lazareto de Elvas, onde se constataram casos, logo ali suffocados, mercê das medidas adoptadas e do zelo do respectivo director, o dr. Vieira de Menezes, já fallecido, mas, em tudo e por tudo digno de ser lembrado com elogio.

A campanha durara desde setembro de 1884 até abril de 1886.

Não quero agora discutir a questão dos cordões sanitarios, postos de banda menos por inefficacia do que por contrariarem as relações internacionaes de toda a ordem; todavia, recordarei sempre que, discutindo-se n’essa occasião este ponto na nossa primeira sociedade de medicina, foi rejeitada a moção que em absoluto os condemnava e desfazia, e substituida por outra do grande homem de sciencia que em vida se chamou Sousa Martins, do theor seguinte:

«A fronteira portugueza está fóra das hypotheses em que um cordão sanitario com quarentenas terrestres póde ser applicado com probabilidades de bom exito». E teve 13 votos a favor e 12 contra.

Repito que esta discussão nem é precisa nem me agrada, mas, a verdade, é que a moção votada pela Sociedade das Sciencias Medicas ácerca de cordões sanitarios, de que se fez uma arma offensiva contra a defesa adoptada, não é muito discorde nem muito feroz contra a sua efficacia.

O obituario por colera computado em Hespanha, desde 1884 a 1886, sóbe a 200:000 pessoas!

Corria tudo socegadamente [sic], em 1890, quando de subito appareceu a colera em Puebla de Rogat, pequena povoação da provincia de Castellon. Desta vez, assolou esta provincia, a de Valencia, a de Toledo e mais sete do sul da Hespanha, chegando a Llerena, na de Badajoz, fronteiriça dos nossos districtos alemtejanos [sic]. As medidas sanitarias foram da mesma ordem e com egual severidade, e a colera tambem não entrou em Portugal.

Diversas foram as explicações adduzidas para estabelecer a origem da epidemia em Puebla de Rogat, mas, nenhuma, em verdade, póde satisfazer.

Para os que não somos exclusivamente importistas, o caso entraria provavelmente e singelamente na doutrina da seductora revivescencia, pela diffusão da sua semente, pela sua adaptação e evolução para ganhar virulencia e impulso; para os importistas enragés, não o explicam, e põem-lhe para a sua genesis um porta-bacillos com um enorme ponto de interrogação adiante.

A sabença hespanhola, nessa occasião, aventou a explicação do facto em um movimento de terras, trazidas do local onde anteriormente fôra cemiterio de colericos, para aterrar um largo ou praça da povoação primeiro atacada. Os importistas com origem gangerica obrigatoria, propenderam mais para o vapor Deccan, que tocou em Valencia, tendo casos de colera a bordo. Verdade é que este facto é posterior á manifestação da colera em Castellon. Mysterios, sempre mysterios, na origem das epidemias.

Ao rebate da colera de 1892, o regimen foi outro. Dotaram-se as cinco bocas dos caminhos de ferro internacionaes com serviços de inspecção medica, de desinfecção pelo vapor saturado, de isolamento, e estabeleceu-se para os passageiros o porte de guias sanitarias com revisão medica no logar do destino. D’esta vez entrou em funcção a Barca d’Alva, sendo este perigoso posto confiado ao eximio professor da escola de medicina do Porto, o dr. Lopes Martins, então medico militar.

Todos os directores dos serviços da fronteira cumpriram bem; mas, sobrelevando a todos, o serviço de Lopes Martins, como obra de sciencia e consciencia, foi modelar, inexcedivel.

A colera tambem d’esta vez não entrou no paiz. Esta é, por extracto, a nossa folha de serviços, durante seis annos de travado combate contra a Hespanha, contaminada de colera.

Defendemos bem ou defendemos mal? Não posso dizel-o; póde ser que tudo isto fosse obra do acaso ou da fausta fortuna, mas aos censores dou para chuchurrear a sentenciosa maxima de que: «le succès a toujours raison».

Suggestivo é, na verdade, o ensejo para dizer n’este logar que o inspector, Cunha Bellem, deu, n’esta peleja contra o monstro, que só de sangue se alimenta, exuberantes provas do seu saber e incansavel esforço, e de funccionario zelosissimo.

Mais tarde, com as reformas progressistas de 1899, levamos baixa de posto. De commandantes passamos a commandados, de dirigentes passamos a dirigidos. A Canaan da saude publica não tinha de ser para nós. Está bem; não ha motivo para penar nem para ralhar. O inspector de tão relevantes meritos, dr. Cunha Bellem, partiu para a viagem de que se não volta mais; eu desejo sinceramente que, se a colera nos bater á porta, a fortuna seja tão propicia aos actuaes dirigentes da campanha anti-colera como o foi para os antigos inspectores.

São estes os meus especiaes e abertos votos.

G. ENNES.


Referência bibliográfica

G. Enes - "Assumptos do dia / Questões medico-sociaes / CIV / As minhas campanhas contra a colera (1848-1886 – 1890-1892)" in Diário de Notícias de 9 de Setembro de 1910, nº. 16101, p. 1 (c. 1-2). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=1955.



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