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Pontos a considerar na defeza moderna contra a colera
Ha doenças infecciosas que são determinadas sempre por um microbio unico, exemplos: a peste, o carbunculo, a febre typhoide. O agente microbiano é, n’este caso, especifico. Em outras doenças entram, como motor pathogeneo, microbios diversos da mesma especie ou de especies differentes, accionando isoladamente, ou em combinações variaveis, na realisação dos typos morbidos que lhes correspondem, exemplos: as doenças de microbismo latente, como a diphteria, a estomatite, a grippe, a meningite cerebro-espinhal, e mesmo, talvez, a colera. Para esta escola é verdade pura que o contagio, sómente, não explica a expansão das epidemias. Soccorre-se então á autogénese, que é o reconhecimento – esse, incontestavel – das condições locaes e individuaes que contrariam ou favorecem a virulencia dos germens. Não lhe basta uma simples transferencia d’esses elementos; conchega-se antes á pathogenia intrinseca a combinar-se e a quadrar-se com a pathogenia extrinseca. E, por ella, se explica a evolução multiannual, e até secular, das doenças epidemicas, que se determina pela exaltação ou depressão eventuaes e temporarias dos seus germens, ou, segundo a phrase de Pasteur, pelas variações incessantes dos virus.
Ora, com a colera, afinal de contas, a bactereologia [sic] não disse ainda, naturalmente, a sua ultima palavra, como na epidemiologia colerica; o que ha então são hypotheses, mais ou menos captivantes, ou assomadas, mas ainda todas por estabelecer sobre dados positivos, vae-se theorisando muito, cada um á sua luz, sobre os modos como se lança, se propaga e se exhausta o principio da doença.
Mas, deixando as theses, vamos ao que mais importa: ao modo de espancar e deslombar o bacillo colerigeneo. Que este só venha de longe ou que venha de longe e de perto, o que sempre mais ha de interessar ao grande publico, e na hora presente e no nosso caso, até mesmo aos profissionaes, são as ferreas armas que trazemos para o combate e a destreza com que as manejamos. A qualidade da malha da armadura que nos enroupa, e o gume do pesado montante que o braço sustenta, é que são os cuidados agudos de quem é defendido e de quem defende.
Vão tapar-se as fendas todas por onde, no transito maritimo e terrestre, a epidemia póde penetrar? E, caso penetre, estará já o terreno saneado até onde seja possivel, estarão egualmente garantidas a defeza e a assistencia medica?
Penso que sim, que o tempo não é demasiado para a montagem da machina.
Vamos, então, ao que é mais positivo e mais essencial no actual momento, isto é, a determinados pontos que julgo deverem ser hoje considerados na defeza especial contra a colera, como tenros fructos da ultima colheita:
1.º - Toda a defeza que não atacar a questão dos porta-bacillos é franzivel, impotente e discordante da moderna prophylaxia contra as invasões da colera, não se desdenhe d’esta grave questão, emquanto [sic] é tempo;
2.º - A emigração em transito carece de ser acautelada, e pautada pelas differentes hypotheses do perigo maior ou menor; mas, o regimen dos emigrantes orientaes tem de ser organisado já, com rigor, por motivo de ordem sanitaria, de modo a reduzir ao minimo o contacto desta especie de viajantes com os nacionaes;
3.º - É necessario harmonisar a legislação com estes dados; assim tem procedido a Allemanha, a Hollanda, e os paizes da America;
4.º - O isolamento para os doentes e suspeitos, e o isolamento immediato e preventivo de todas as pessoas que tenham tido contacto com os doentes, tem de ser autenticado por uma legislação especial que habilite a deter, sob esse regimen, os casos confirmados ou suspeitos, ou os individuos que pelo seu estado geral ou pela origem sejam causa de desconfiança como portadores de bacillos;
5.º - Resolver o que ha a prescrever com respeito aos estrangeiros que, embora procedentes de paiz onde grasse a colera, entram e se domiciliam livremente no nosso territorio;
6.º - Ter installações para todos estes serviços; e egualmente pessoal sanitario de toda a ordem, adestrado e disponivel, sem o ir arrancar aos grandes centros onde façam falta ou possam comprometter a acção de combate dos institutos que os empregam;
7.º - Assegurar, por analyses frequentes, a pureza das aguas de bebida, abonando assim esta qualidade indispensavel, na vigencia de uma epidemia de colera, tanto na origem, como no transporte e distribuição;
Sendo o leite egualmente um excellente vehiculo do bacillo colerico, seria recommendavel a prohibição absoluta da venda d’este producto, quando não seja fervido; não é menos perigoso do que póde ser a agua, no periodo epidemico;
8º - Insistir na immediata declaração de qualquer caso suspeito, e na obrigatoriedade da desinfecção. Tornar as familias solidarias com os medicos na execução d’este preceito. Esta obrigação, em verdade, não deve pezar exclusivamente sobre os medicos; convem estudar a forma de associar a ella as familias ou quem as represente;
9.º - Dar aos funccionarios da sanidade maritima, por um diploma, faculdade para, a bordo, obrigarem a vigilancia sanitaria certos passageiros, quando a regra geral tenha sido a livre pratica.
Todos estes mandamentos na phase actual da defeza, se encerram em dois: saber pesquizar e pesquizar o bacillo colerico, e conhecer bem as praticas da desinfecção e os desinfectantes apropriados á especie.
Estes dois pontos, sobre todos os outros, são agora de um interesse capital e preciso se torna attendel-os, como satisfação ás exigencias da defeza, e como um pedido que se faz em nome de uma instante necessidade. Ninguem põe em duvida que a bacteriologia official do paiz conhece muito bem estes assumptos, mas, no caso presente, é preciso alargar para mais longe a esphera d’estes conhecimentos especiaes.
Os serviços d’esta natureza, bem installados e bem dirigidos, constituem os nossos melhores meios de protecção. Só assim se evita o accesso do mal, ou se limita o raio da epidemia e se obvia á propagação do seu germen, o que equivale a ser então possivel extinguil-a. Quem não trabalhar com esta orientação, trabalhará ás cegas e pouco poderá conquistar. A pesquiza do bacillo colerico substituiu a velha barreira quarentenaria e a defeza manu militar. E, não se esqueça que esta doença se adquire e se propaga pelo contacto immediato ou mediato com as dejecções infectadas, ou pelo uso da agua, já directamente ingerida, já como agua bacillifera, maculando os alimentos ou os utensilios de que nos servimos. Quando é o contacto a causa propagadora da epidemia, o processo é, por assim dizer, o da mancha do azeite que vae lavrando e alastrando; quando a propagação é feita pela agua de bebida, a epidemia tem então um caracteristico explosivo, singular e explicito.
Mas, por a mesma occasião, faça-se acerba, tremenda, implacavel,
Guerra ás moscas.
G. ENNES.
G. Enes - "Assumptos do dia / Questões medico-sociaes / CV / Pontos a considerar na defeza moderna contra a colera"
in Diário de Notícias
de 16 de Setembro de 1910, nº. 16108, p. 1 (c. 1-2). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=1960.