Assumptos do dia
Questões medico-sociaes
CVI
Meios de defeza perto e longe do doente colerico
O que se tem visto na grande maioria dos casos e nos differentes paizes, sem esquecer da lembrança o nosso, é tomarem-se as medidas sanitarias severas sómente no momento angustioso do apparecimento de uma epidemia, attingindo por isso, em regra, o flagello proporções de uma epidemia a valer.
Não succederia assim se não fosse esquecida a maxima salutar do «principus obsta». Por outro lado, quando a epidemia cessa, ninguem mais em tal pensa, e nada já se faz que se pareça com a antiga e precisa severidade em questão de previsão e combate de epidemias. Não ha duvida que se não podem ter locaes, edificios e serviços folgados e em pousio, á espera de doenças muito serias, em verdade, mas que nos visitam de largos em largos annos. Mas, uma cousa seria um tal preparamento e um tamanho regalo, e outro caso é o ser apanhado de surpreza e com faltas de primeira ordem.
A prudencia, que, segundo Cicero, é experiencia e sciencia, manda pensar com tempo nestas temerosas eventualidades. Não cuidei, como dizia o nosso Vieira, é não fazer caso da primeira maxima da prudencia. Preciso se torna, em boa paz sanitaria, estabelecer o plano estrategico da defeza dos grandes centros sobretudo, consistindo no numero e distribuição dos hospitaes para epidemiados; em pôr marca nos edificios que possam servir para hospitaes, hospicios ou enfermarias de occasião; em annotar e fazer rol das casas occupadas ou destinadas a outros fins que se possam transformar e aproveitar para o periodo em que a epidemia grasse.
Mas, não é só isto; o pessoal medico e sanitario de toda a ordem; o material, agentes e processos de desinfecção; a asseguração dos primeiros soccorros; o transporte cauto dos doentes, e outros muitos pontos que seria longo circumstanciar [sic], teem de estar previstos, precisados ou até mesmo apparelhados por nucleos, para se fru[str]ar o perigo e o ataque das invasões epidemicas.
E, não é apenas a colera que nos ameaça por vezes, e não é sómente contra a colera que precisamos estar armados e municiados.
A velha formula de que na paz é que nos devemos preparar para a guerra, tem logar sempre na defeza das doenças epidemicas, e opportunidade inquieta na hora presente.
A estrategia sanitaria, antes mesmo de ordenar os movimentos do exercito da sanidade publica e de conduzir as suas tropas, deve gravar na carta corographica do paiz ou pelo menos topographica, como se fôra uma verdadeira carta militar, todos os pontos defensivos e offensivos que convém conhecer e dispôr de antemão para se formar e executar um bom plano de campanha.
Entenda-se, porém, e de um modo bem expressivo, que em tudo isto não ha a sombra de uma advertencia ou conselho indirecto, e, por conseguinte, qualquer referencia á nossa situação actual perante o perigo colerico.
Se o entendesse preciso, fal-o-ia de um modo circumspecto [sic], mas, explicito.
São proposições geraes que se dirigem a registar o desamparo em que andam por esse mundo fóra os assumptos da educação e defeza hygienicas.
Pois, no meio de tantas difficuldades, tantos cuidades, e de, tantas vezes, termos de fazer das fraquezas forças, um facto nos deve dar animo e valor; a colera está no rol das doenças evitaveis; é até uma das mais evitaveis.
Conhecem-se os meios de a evitar, appliquem-se então.
Vamos resumil-os; primeiramente, os que são essenciaes no contacto com os doentes, e, em seguida, a prophylaxia a distancia do colerico.
No primeiro caso, devem seguir-se os principios que passamos a recopilar:
a) Isolar o doente, e não consentir que se lhe approxime senão quem haja de o tratar. Melhor ainda é hospitalizal-o, quando isso possa ser;
b) Recolher todas as dejecções em vasos que contenham um liquido desinfectante, e só a despejar depois de um demorado contacto com esse liquido. Queimal-as, ainda é mais seguro;
c) Metter em um banho desinfectante ou em agua fervente todas as roupas de que o doente faça uso. Depois, seguirão, como os artigos das camas, para os estabelecimentos da desinfecção publica, onde os houver. Nenhumas roupas serão entregues ás lavadeiras sem terem sido desinfectadas;
d) Não sacudir das janellas objecto algum que tenha servido aos doentes ou provenha de locaes por estes occupados;
e) Quando as roupas não possam logo ser desinfectadas, guardal-as em saccos e em logares, sem perigo de serem manipuladas;
f) Queimar as peças de roupa sem valor ou os artigos de penso. Se, porém, forem eliminados de qualquer outra fórma, tratal-os então sempre e com demora por um liquido desinfectante forte;
g) Em caso de terminação da doença ou de mudança eventual do doente, operar a desinfecção geral do quarto e de tudo quanto tenha tido contacto com o doente, e desinfectar o pessoal que o esteve tratando;
h) Todos os utensilios de cozinha e mais recipientes empregados no tratamento dos doentes, deverão ser demoradamente mergulhados em um liquido desinfectante ou em agua fervente;
i) Os objectos meudos [sic] de uso pessoal do doente serão sur place destruidos pelo fogo, se não forem de valor; ou serão desinfectados pelos meios proprios, se valer a pena conserval-os;
j) Os alimentos encontrados nos quartos contaminados serão sempre destruidos pelo fogo;
k) Resguardar as pessoas que tratam dos doentes com um fato especial, comprehendendo calçado, que será usado no quarto do doente, por todo o tempo que ellas ahi se demorem, e deposto á saida do local contaminado. Se o calçado não fôr especial no quarto do doente, é de rigor desinfectar o que se usa, esfregando bem em um capachão encharcado em um desinfectante energico;
l) Ás pessoas que tratam os doentes, não devem, em caso algum, comer ou beber nos quartos dos doentes;
m) Defender o quarto do doente do accesso das moscas, mas, se estas, como é facil, penetram nos quartos contaminados, captural-as por meio dos varios cemiterios das moscas, que se encontram á venda, e destruil-as em seguida pela combustão do preparado que as tem presas; e finalmente,
n) Desinfectar e lavar com o maior rigor, as mãos, depois de qualquer contacto suspeito, e do mesmo modo a bocca antes das refeições.
E, a este respeito, quero dizer-lhes aqui muito á puridade, e se promettem não se zangar, o seguinte:
Poucas pessoas sabem lavar as mãos.
G. ENNES.
G. Enes - "Assumptos do dia / Questões medico-sociaes / CVI / Meios de defeza perto e longe do doente colerico"
in Diário de Notícias
de 20 de Setembro de 1910, nº. 16112, p. 1 (c. 1-2). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=1966.