Chronica scientifica
A desinfecção pelo fumo – restauração de um processo empirico sob modernos principios scientificos
É de uso dizer, a respeito de cousas que, parecendo ter o mais entranhado cunho de modernismo, encontram nos tempos idos o seu legitimo antecesso – Nihil sub sole novum, isto é, nada é novo debaixo do Sol. A respeito de certos modos e processos elementares de desinfecção poderia assim dizer-se, na segurança em que estamos de, nas passadas edades [sic], antes do advento das doutrinas pastorianas, que hoje dominam a pathologia e a clinica, e procurar por tentativas mais ou menos engenhosas e de exito mais ou menos problematico, inutilizar os germes morbigenos. O conceito ácerca da existencia e modo de ser destes era, sem duvida, muito diverso do que hoje é; mas algumas praticas relativas ao conhecimento embora vago, muito imperfeito, da sua acção, permittem affirmar a analogia entre as idéas antigas sobre a propagação das molestias epidemicas e as modernas concepções sobre infecções e contagio.
O exame dos meios d’antes empregados para combater as epidemias põe em bastante evidencia essa analogia e não é sem dizer que, do estudo dessas antiqualhas, aparentemente ridiculas e ingenuas, algum ensinamento se tira e alguma utilidade advem.
Ha neste ponto de vista costumeiras vulgares, postas de parte nos centros em que a civilisação começa a distrahir-nos para mais complicados systemas, derivados do progresso das sciencias, mas que tem a sua razão de ser, mesmo perante as noções scientificas actuaes. Está neste caso, por exemplo, a desinfecção pelo fumo, processo de escolha entre povos antigos para afugentar os morbos que os perseguiam.
Faziam grandes fogos, lançando uma fumarada intensa, para aniquilar os miasmas. Durante a celebre epidemia historicamente conhecida com o nome de peste de Athenas, assim se fez e, como se o processo caisse no dominio do instinctivo, assim veio a praticar-se seculos mais tarde, em Marselha e em Toulon onde, em tempo de epidemia, se acendiam fogueiras e se queimavam o enxofre e as resinas.
Ha dois seculos, na primeira daquellas cidades, assolada pelo flagello, recomendava-se a combustão de uma mistura de enxofre, de resina, pez negro e sementes de hera e de zimbro, juntamente com palha ou feno a que se lançava o fogo. Esta velharia persistente até meados do seculo passado, recomendada com um soberbo recurso prophylactico, teve de ceder em presença de novos agentes e dos methodos mais aperfeiçoados da desinfecção. Os chimicos, Guyton de Morveau, Berthollet, entre outros, desacreditaram-na, afirmando que os fogachos se limitavam a agitar o ar e a dissipar a humidade e que o poder desinfectante dessas fumigações residia inteiramente no acido pyrolinhoso desenvolvido pela combustão das madeiras.
Porém Trillat, o notavel especialista da esterilização pelo formol, sob varias fórmas, inventor de aparelhos já hoje vulgarizados, mostra-nos em trabalhos de um grande fundo scientifico e de uma larga base experimental, que essa desinfecção pelos fumos tem a sua razão de ser e merece ser em muitos casos utilizada. Não é novidade, bem o sabemos, mas vem a proposito recordal-o, numa epoca em que o receio do alcance epidemico impera em certos espiritos e preocupa as autoridades encarregadas da defesa sanitaria das populações.
Num dos seus trabalhos mais interessantes, Trillat revela que a combustão de certos vegetaes produz fumos ricos em aldehyde formico ou formol, capazes de operarem uma desinfecção parcial, á falta de melhor.
Revendo a lista de substancias empregadas pelos antigos e o modo de se servirem dellas, reconhece-se que eram escolhidas justamente aquellas que podiam dar maior quantidade de productos formalinados, pela sua queima incompleta. A velha usança de defumar as casas com alecrim e alfazema, ainda hoje em voga, não tem outra explicação.
O mesmo se póde dizer do vinagre ou do vinho queimado sobre calhaus previamente aquecidos. Se cada fumigação de per si não póde dar, por uma fórma grosseira, mais do que pequenas porções de formol, comprehende-se que a repetição do processo acumule essas diminutas quantidades do agente microbicida e opére a desinfecção completa.
Com o ser de um empirismo archaico, não é para desprezar similhante costume, a que a sciencia do presente encontra o verdadeiro fundamento e que póde ter na pratica mais de uma aplicação sensata e feliz. Recentemente, se póde dizer, o mesmo autor recomeçou os estudos sobre a desinfecção pelo fumo de palha incompletamente queimada e redigiu sobre isso uma memoria que foi presente á Academia das Sciencias de Paris. O principio dessa desinfecção reside na formação de derivados phenolicos e aldehydicos, durante a combustão lenta e parcial da palha. Estes corpos teem a sua origem na oxydação dos gases resultantes sobre o carvão de palha, a uma temperatura elevada. Trillat verificou que estes corpos oxydados a uma temperatura de cerca de 400º davam origem ao aldehydeformico e ao trioscy methylene, dois antisepticos energicos, cujas virtudes são bastante conhecidas.
Accrescenta-se á acção d’estes corpos a dos compostos phenolicos e a presença do acido pyrolinhoso, o qual amplia e facilita o ataque dos germens por aquelles corpos.
O fumo da palha tem inconvenientes, como se sabe; mancha os objectos de amarello e não poderá ser empregado com segurança, a não ser contra germes de pouca vitalidade ou faceis de atenuar; mas a sua energia deficiente póde compensar-se, como já dissémos, pela multiplicidade da operação.
No campo, onde os aparelhamentos mais completos fazem falta, e os processos a empregar teem de ser muitas vezes sumarios este será um meio de beneficiação local, para estabulos, adegas, esgotos, tuneis, poços, etc., onde seja necessario acumular grandes quantidades de principios formaldehydicos. Pelo menos, poderá ser preferido pela sua economia e simplicidade.
J. BETTENCOURT FERREIRA.
J. Bettencourt Ferreira - "Chronica scientifica / A desinfecção pelo fumo – restauração de um processo empirico sob modernos principios scentificos"
in Diário de Notícias
de 20 de Setembro de 1910, nº. 16112, p. 1 (c. 4). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=1967.