Chronica scientifica
Trabalhos dos mergulhadores
É sempre com uma certa emoção que se assiste a uma pesquiza executada pelos mergulhadores. Ainda que se desconheçam os perigos e difficuldades de similhante tarefa, não se póde deixar de ligar instinctivamente uma idéa de grave risco ao trabalho heroico que esta casta de trabalhadores realisa frequentemente e que muitas vezes se intenta com fins salvadores e altruistas, como tem acontecido por occasião dos desastres dos submarinos. Alem dos transtornos physicos e perturbações de diversa gravidade, que adveem para os mergulhadores, do seu pesado encargo, a morte tem sido mais de uma occasião o termo do seu mal compensado esforço.
Até ha pouco a sciencia não tinha sido chamada a influir sobre o destino d’estes operarios e ninguem se havia occupado em estabelecer, sob a direcção de principios scientificos e sobre bases experimentaes, o exercicio de tão dificil mister. Apenas um empirismo brutal, como a força das circumstancias [sic] que determinam tão rude empreza, por exemplo, a de levantar do fundo do mar o casco de um navio afundado, ou praticar certos reconhecimentos sob consideraveis massas d’agua.
Comtudo [sic] as imperiosas necessidades da vida industrial moderna, principalmente o desenvolvimento da marinha das diversas potencias navaes, a navegação submarina, os differentes prepositos, pacificos ou guerreiros, a que esta póde dar feição; a amplificação das construcções hydraulicas e ainda e sobretudo os serviços de salvação especiaes, a que sobretudo obrigam as manobras dos nautilos, tudo isso merece da parte de technicos illustrados o interesse que este importante assumpto devia attrahir e chega, pelo alcance dos estudos effectuados e das experiencias realisadas, a constituir a diligencia do mergulhador ou escaphandrista os elementos de uma verdadeira arte.
O que até aqui era devido á valentia e á temeridade de homens robustos e arrojados poderá ser de futuro a obra de uma calculada prudencia, auxiliada por uma perfeição maior dos apparelhos.
É claro que o augmento de segurança e a diminuição das difficuldades e dos perigos que cercam os mergulhadores importam muito para o adiantamento de certos trabalhos a fazer nas profundidades do mar onde o homem póde descer e que até ha pouco lhe eram vedadas, mesmo sob a protecção do escaphandro.
Julgára-se não ha muito que além de 36 metros de fundura não era possivel o exercicio dos mergulhadores, por causa do incommodo da respiração, embora em casos excepcionaes, que é bom pôr em duvida, aliás devidos a individuos excepcionalmente resistentes, tenham sido attingidas maiores profundidades, 50 metros quando mais não fosse. Cita-se, por exemplo, o caso de um escaphandro que no decurso de operações de Salvamento nas costas da Africa do Sul, desceu a 60 metros e um outro foi até 65, para apanhar algumas barras de cobre, façanha que aliás lhe custou a vida.
Em geral os praticos consideram a descida a 20 metros como um limite que raras vezes se póde ultrapassar, correndo aquelles que o tentam fazer grave risco e succumbindo muitos por isso.
Cabe ao almirantado inglez o louvor de ter sujeitado a um methodo derivado de observações e experiencias scientificamente conduzidas á pratica dos mergulhos em profundeza. Aquella corporação reuniu em 1905 uma commissão com o fim de estudar essa questão. Os resultados a que essa commissão chegou são realmente notaveis e não só delles derivam regras necessarias para bom emprego dos mergulhadores, mas egualmente mostram as condições em que o organismo humano póde viver a determinadas profundidades e as reacções de que elle é capaz sob a pressão enorme suportada a muitos metros debaixo de agua.
De passagem diremos que as experiencias mais perigosas foram feitas pelos proprios membros da comissão referida, fornecendo assim um raro exemplo de dedicação scientifico [sic] e respeito do dever.
Quando o mergulhador atinge profundidades de mais de 20 metros os movimentos tornam-se dificeis, a começar pelos da respiração e portanto a facilidade de qualquer trabalho diminue até ao ponto de se tornar impossivel. A volta á superfície encerra porém os maiores perigos. É durante ella que produzem as perturbações mais graves, como paralysias organicas, especialmente dos membros inferiores. Estes e outros accidentes de que os mergulhadores são victimas com frequencia são phenomenos de descompressão.
Notou-se que as alterações respiratorias são devidas á accumulação de gaz carbonico no capacete, para expulsar o qual gaz se torna necessario impellir maior quantidade de ar introduzido pela bomba que trabalha sempre durante estas operações a bordo de embarcações apropriadas.
Está estabelecido que, seja qual fôr a pressão a que o mergulhador se acha submettido, o volume de ar que lhe é enviado deve medir-se pela mesma pressão. Para este efeito torna-se indispensavel que as bombas empregadas tenham a força necessaria para fazer chegar o ar renovado á profundidade requerida. Se ellas o não conseguem o mergulhador experimenta debaixo de agua o mal estar que todos sofremos nas atmospheras viciadas, em que o anhydrido carbonico se acumulava além de uma certa proporção. A commissão inglesa verificou que as bombas usadas ordinariamente n’estes serviços não faziam chegar a necessaria proporção d’ar conforme a profundidade a que podia encontrar-se o mergulhador. Portanto a potencia e o excellente funccionamento destes machinismos é uma cousa de primeira importancia para os trabalhos desta ordem.
Conjurar este perigo é facil relativamente, quer pela qualidade das bombas em acção, quer pela adopção de aparelhos de oxygenio, de que hoje a industria fornece modelos simples, portateis e seguros.
Uma circumstancia [sic] mais delicada occorre, porém, durante a subida do mergulhador, sendo particularmente a ella devidas algumas das occorrencias lamentaveis que estas arduas manobras comportam.
Esta ascenção [sic] faz-se ás vezes precipitadamente, principalmente por ser insustentavel a situação em baixo. Dá-se então o phenomeno de descompressão, que provoca por vezes accidentes mortaes, apresentando as victimas symptomas de asphyxia e de paralysia.
A explicação d’estes phenomenos é conhecida de ha muitos annos; restava applical-a a estes casos e tomar as medidas precisas para o evitar.
Foi o physico francês Paul Bert que encontrou a natural explicação desses factos ha muitos annos, a qual consiste em que quando um gaz se acha em contacto com um liquido este absorve uma parte d’aquelle até se saturar. Quando um animal se encontra n’uma athmosphera comprimida o sangue toma na sua massa uma certa proporção de oxigenio e de azote, dos quaes o primeiro se combina fixando-se n’esse liquido nutritivo, emquanto [sic] o azote fica de um modo similhante áquelle em que se encontra o acido carbonico comprimido na agua. Quando a pressão diminue, o que acontece no caso do mergulhador que volta á superfície, o azote desprende-se do sangue na forma de bolhas, á maneira do gaz que se evolve da agua de Seltz. Da formação d’estas bolhas no sangue resulta a interrupção da circulação e d’ahi os symptomas asphysicos e os casos de morte repentina notados por escaphandristas.
Dois meios existem para evitar desastres d’esta sorte. Consistem elles em evitar o mais possivel o tempo em que o mergulhador se demora debaixo de agua e trazel-o acima de um modo lento.
Esta volta á superficie deve, porém, fazer-se com um certo methodo. Primeiro ha de o megulhador abandonar depressa a zona de pressão mais elevada e moderar em seguida a velocidade, quando se aproxima das camadas superiores.
Multiplicadas experiencias da commissão permittem estabelecer com numeros quanto possivel exactos a fórma como a ascenção deve ser executada, para evitar os phenomenos de descompressão. Se as perturbações resultantes d’ella se manifestam submette-se o mergulhador á recompressão, para o que se inventaram camaras especiaes, onde o escaphandrista soffre de novo a pressão do ar comprimido.
No dizer de Sauvaire Jourdan, um official da marinha franceza, que se tem especialisado n’estas questões, o relatorio da commissão ingleza encerra ensinamentos preciosos, que uma bem entendida vulgarisação pelos officiaes e marinheiros ou operarios empregados n’estas fainas, tão arduas e perigosas, seria de indiscutivel conveniencia, attenta a utilisação cada vez mais consideravel que a arte naval e as obras que a ella se ligam fazem d’estes serviços.
J. BETTENCOURT FERREIRA
J. Bettencourt Ferreira - "Chronica scientifica / Trabalhos dos mergulhadores"
in Diário de Notícias
de 4 de Outubro de 1910, nº. 16126, p. 2 (c. 2-3). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=1973.
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