Questões medico-sociaes
CVIII
A defeza anti-colerica segundo um figurino francez
Para mais desilludir os que confiam na defeza da França e Hespanha, como garantia estavel para não sermos invadidos pela colera, vamos transcrever e commentar a substancia de um decreto que o primeiro d’aquelles paizes publicou no correr do mez de agosto ultimo, isto é, na phase actual e repulsiva da luta anti-colerica. Começa por ordenar que seja retido na fronteira todo o individuo, que, procedente de uma região contaminada de colera, apresente syntomas suspeitos da mesma doença, o que está commettido a um commissario especial de gare, o qual, isolando o doente suspeito, requisitará logo um medico. Se este não diagnosticar colera, o passageiro segue o seu destino; no caso contrario, o commissario especial, de accordo com a auctoridade municipal, assegura o transporte do doente para um local, onde fique isolado, com o possivel conforto para elle e efficazes garantias para a saude publica. E então avisado pelo telegrapho o prefeito que mandará pela via mais rapida para o local o delegado departamental que toma a seu cargo a execução de todas as necessarias medidas de isolamento e prophylaxia.
Se a doença se manifesta em caminho, o doente ou suspeito é isolado no compartimento que logo é abandonado pelos outros viajantes. As companhias dos caminhos de ferro são obrigadas a auxiliar e assegurar o cumprimento d’estas providencias. Depois, trata-se o mais breve que seja possivel, de desinfectar o vagon que foi occupado pelo doente.
Em artigos seguintes, indica o decreto os objectos cuja entrada é agora absolutamente prohibida em França; recommenda a participação, por parte das casas que recebem hospedes, de todas as pessoas que venham directamente das regiões contaminadas de colera, e n’ellas tenham pousada; insiste na declaração obrigatoria dos casos de doença, alargando este dever até aos chefes de familia, e define as funcções dos delegados departamentaes. Estas incidem sobre a nota dos casos, sobre as medidas eventuaes tomadas ácerca da hygiene das habitações e localidades, e a respeito de todos os incidentes ocorridos na execução das disposições decretadas. Na disposição final, insere as penalidades correspondentes ás infracções e que vão graduadas em multa e prisão que póde ir até quinze dias.
Viram já um diploma que mais á ligeira infunda a prophylaxia patrimonial e a moderna defeza contra a colera? Não deve ter custado grande trabalho esta producção.
O commissario especial de Gare, que não é medico e que somente por algumas informações e o seu cégo tacto, detem os passageiros de saude duvidosa, requerendo um medico que se não sabe onde está, perece-me um fragil lenho para a negra tempestade da colera.
E o delegado departamental que ha de vir depois, que ha de chegar sempre tarde, e que está incumbido de todas as providencias que o caso exige, sem se verem as forças que lhe entregam para oppôr ao acommettimento da epidemia, não póde ser tomado senão como um cargo pesado e esteril, uma providencia faut de mieux de quem devia dar, mas não quiz dar coisa melhor. Em tudo o mais, a mesma incertidão, a mesma fórma vagante e turva.
Em Portugal tambem ha providencias do mesmo esboço. Do mesmo, e de outro genero que consiste em termos beis [sic] que, embora com defeitos e que exigem a suppressão de varios artigos démodés e o addicionamento necessario de outros que concordem com os dados modernos, encerram, todavia, disposições boas nas materias que esses codigos abrangem. Infelizmente, nem todas se cumprem. Foram feitas para o papel, e no papel teem dormido dilatado somno.
Ora, sobre qualquer lei, devem planar duas condições essenciaes: ser boa e ser executada. A lei fez-se para se cumprir, e cumpre-se porque é lei. Representa um acto de razão e de força.
Se lhe faltar a observancia exacta ou peor ainda se a deixarem ser letra morta em muitos dos seus mandados, apenas poderá dar uma segurança apparente e fallaz.
Para que servirá então essa lei, se não se sentir o beneficio e a acção da intelligencia que a elaborou? Não basta abrir uma estrada, é preciso pôl-a na circulação geral.
Uma cousa é a ideia directiva de uma lei, e outra cousa é assegurar-se a sua pratica e o integral cumprimento das suas disposições. Conseguir a resolução destes dois termos do problema é condão especifico que nem todos possuem. E não será a desvanecida vaidade ou a gratidão devida que poderão conferir essa alta prenda a quem fundamentalmente a não tenha.
Mas ainda outra vez, corro a tanger o badalo do sino: generaliso, não particulariso. «Generalisai para não offenderdes», disse-o Plutarcho, que foi moralista e deu lições de philosophia, depois de ser archonte, e sacerdote de Apollo, que significa esplendor do sol! O qual sol tambem os seus desgostos, pois, são muitas vezes os que mais se aqueceram a elle, quando alentos e luz dava ao mundo, que o apedrejam ao declinar para o occaso, ou quando acaba a vida na mortalha da noite.
Ha mais ainda, ha os amigos dos diabos de todas, a especie mais prejudicial.
G. ENNES.
G. Enes - "Questões medico-sociaes / CVIII / A defeza anti-colerica segundo um figurino francez"
in Diário de Notícias
de 5 de Outubro de 1910, nº. 16127, p. 2 (c. 8). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=1974.