Chronica scientifica
O espirito scientifico e ensino publico
A Sciencia é, como muitos termos em voga, uma palavra de significação indefinida, uma abstracção, uma especie de divindade que é representada por numerosos pontifices e servida por innumeros crentes, fervorosos e devotos a ponto de se sacrificarem por ella.
Como a energia electrica, cuja natureza intima desconhecemos, a sciencia existe para nós apenas pelas manifestações do pensamento, do qual não sabemos definir o obscuro mechanismo. Conhecemo-la pelas forças que põe em acção; pelas leis do Universo descobertas pelos sabios: entendemo-la pela doutrina dos mestres; exaltamo-la na obra dos inventores, dos artistas e dos technicos que a aplicam; admiramo-la pelo entranhado amor da verdade e do bem, que manifestam aquelles que a cultivam e a servem. Realmente a Sciencia só tem existencia como creação do nosso espirito, comprehendendo assim o imenso conjuncto de cousas que o homem é capaz de abranger pela sua intectualidade e de discernir pelo esforço das suas faculdades pensantes. Concretisando [sic] um pouco, nós podemos entende-la como resultado de um esforço e aprecial-a pelos beneficios que ella traz individualmente ao homem, pelo conhecimento que desvela as obscuridades do ignoto e pelo bem estar com que os seus descobrimentos e invenções dotam as sociedades, pelo progresso emfim [sic] que ella faz seguir á humanidade.
As sociedades modernas não executam essa marcha para o futuro sem o esclarecimento desse espirito scientifico.
O adiantamento dessas collectividades só se realiza proveitosamente sob a acção sugestiva que a mentalidade superiormente educada exerce sobre as diferentes classes em que ellas se dividem.
A sciencia avalia-se principalmente hoje pelo seu estado dynamico, de constante evolução e actividade; outr’ora reconhecia-se pelo seu modo de ser estatico, que o dogmatismo se esforçava por tornar imutavel. Nas passadas edades [sic] o sabio era monopolista da sabedoria, dotado de o poder devinatorio, de dom prophetico. Foi assim nos tempos que podem chamar-se encyclopedicos, nos quaes aos homens de saber competia um agregado de disciplinas de forçada ligação umas ás outras. Manteve-se aproximadamente da mesma fórma até a Encyclopedia propriamente dita, que o seculo XVIII aperfeiçoou, dando-lhe mais latitude e que o seculo passado aluiu, rompendo esses moldes demasiado estreitos para a magnitude dos conhecimentos modernos e insuficientes para as exigencias mentaes da actualidade.
Até essa epoca, quase diriamos era facil ser-se sabio, tão reduzido o numero de objectos que constituiam os elementos de saber e a pequena bagagem eruditiva que a cada um pertencia. O aumento prodigioso dos assuntos e questões pelas quaes tem de se repartir a atenção dos homens que se dizem doutos, particularmente no cyclo transacto, modificou profundamente esta concepção do que seja o sabio.
A idéa corrente para muitas pessoas de que ser sabio é alcançar a maior quantidade de conhecimentos sobre os mais variados objectos é considerada uma noção falsa. Um sabio reduzido unicamente ao seu peculio de saber não valeria mais que um livro ou um repositorio. É necessario fazer dos verdadeiros homens de sciencia um conceito mais elevado e mais estavel. Elles devem distinguir-se pelo espirito de investigação, que os obriga constantemente a perscrutar os mysterios com que o desconhecido lhes estimula a curiosidade, possuir em elevado grau o espirito de observação, desenvolver a iniciativa, donde dimanam as sucessivas descobertas e invenções, que se multiplicam assombrosamente e nos maravilham; deve ter alem disso uma paciencia infatigavel, que permitta a pesquiza serena da verdade e a pertinacia para vencer os obstaculos, que costumadamente se opõem á sua conquista.
São estes os predicados que synthetisam o espirito scientifico, o qual é indispensavel a todo o progresso social não só para preparar o advento ás carreiras publicas, que exigem uma preparação intelectual mais cuidada e completa, mas para desenvolver as qualidades de inteligencia, vontade e iniciativa, que são as condições essenciaes desse progresso, como elle deve ser comprehendido, segundo as tendencias democraticas do presente. Toda a nossa educação scientifica deve pois ser remodelada em vista destes principios e de acordo com elles reorganizadas as instituições sabias, tanto de ensino como proficientes, academias, sociedades e estabelecimentos onde se cultiva e deve aperfeiçoar qualquer ramo de sabedoria.
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Ha quem diga que o ensino publico progrediu entre nós desde o final do seculo anterior. Não o duvidamos quanto ao aumento absoluto de instrucção e ao desdobramento das varias classes escolares; certas materias d’antes ministradas na Escola Polytechnica hoje o são nos lyceus, o que não priva que a maneira como se faz esse ensino seja em todo o caso defeituosa e anachronica. As reformas em todos os graus teem influido apenas superficialmente no ensino, deixando de lado a tarefa educativa, que é consideravel. Poderiamos dizer no nosso pais conforme a phrase de Lippmann no Congresso da Sociedade Francesa para o adiantamento das sciencias, em Lião, que o ensino oficial padece ainda do «vicio burocratico e do pedantismo antigo regimen».
Todas as reformas serão inproductivas emquanto se conservarem estes velhos processos, rotineiros em relação ao moderno espirito scientifico, que não reconhecemos no nosso meio senão muito limitadamente e de uma acção quase estrictamente individual. A utilidade de quaesquer alterações legislativas concernentes á instrucção será sempre problematica se não tratarem de modificar profundamente os methodos pedagogicos, hoje tão radicalmente diversos, sob a influencia da evolução de todas as sciencias, do que eram antigamente.
Todo o systema de concursos e de exames se baseia demasiadamente em provas de memoria, que não envolvem um saber convicto, um trabalho de raciocinio independente e de observação propria. Impera o livro por toda a parte; por toda a parte se faz abuso de compendios e, forçoso é dizel-o, de maus compendios, que são por vezes instrumentos de martyrio para os alumnos, pela sua incomprehensibilidade.
Este inconveniente, que começa a sentir-se nas escolas primarias, onde o estudo se faz já de uma maneira um tanto abstracta e demasiado theorica, sem procurar a adaptação do individuo ao meio em que deve proseguir [sic] a sua actividade, reconhece-se em toda a sua plenitude nas escolas secundarias e superiores, nas quaes as cousas se não acham ainda geralmente organizadas para dar ao ensino essa feição utilitaria e pratica, dominante noutros paizes, por exemplo, na America e na Suissa, para deixar aos que aprendem a livre curiosidade e independencia de interpretação, para simplificar o trabalho do alumno e do professor, tornando a aprendizagem mais proficua e agradavel, aumentando e ampliando os cursos de trabalhos praticos, a vista de tudo que possa oferecer a uns e outros a variedade dos pontos de vista, o assunto interessante de lições de cousas, as relações daquillo que se lhes mostra com a pratica da vida.
A instrucção publica enferma de muitos erros graves dos quaes um dos mais perniciosos é a preparação apressada e imperfeita, em vista de um certificado de exame para documentar habilitações apenas theoricas, quando muito.
Não podemos demorar-nos em pormenores, para não alongar demasiadamente este artigo; por isso nos limitamos a desejar que um dos objectos mais importantes sobre os quaes ha de incidir a attenção do governo da Republica seja a situação efectiva da cultura scientifica no paiz e as reformas que devem remediar essa situação, prejudicada por varios preconceitos e pelo habito e rotina, que nos deixou atrazar mais de cincoenta annos a este respeito.
J. BETTENCOURT FERREIRA
J. Bettencourt Ferreira - "Chronica scientifica / O espirito scientifico e ensino publico"
in Diário de Notícias
de 1 de Novembro de 1910, nº. 16154, p. 1 (c. 3-4). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=1976.
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