Base de Dados CIUHCT

Divulgação Científica em Jornais



Texto da entrada (ID.1976)

Chronica scientifica

O espirito scientifico e ensino publico

A Sciencia é, como muitos termos em voga, uma palavra de significação indefinida, uma abstracção, uma especie de divindade que é representada por numerosos pontifices e servida por innumeros crentes, fervorosos e devotos a ponto de se sacrificarem por ella.

Como a energia electrica, cuja natureza intima desconhecemos, a sciencia existe para nós apenas pelas manifestações do pensamento, do qual não sabemos definir o obscuro mechanismo. Conhecemo-la pelas forças que põe em acção; pelas leis do Universo descobertas pelos sabios: entendemo-la pela doutrina dos mestres; exaltamo-la na obra dos inventores, dos artistas e dos technicos que a aplicam; admiramo-la pelo entranhado amor da verdade e do bem, que manifestam aquelles que a cultivam e a servem. Realmente a Sciencia só tem existencia como creação do nosso espirito, comprehendendo assim o imenso conjuncto de cousas que o homem é capaz de abranger pela sua intectualidade e de discernir pelo esforço das suas faculdades pensantes. Concretisando [sic] um pouco, nós podemos entende-la como resultado de um esforço e aprecial-a pelos beneficios que ella traz individualmente ao homem, pelo conhecimento que desvela as obscuridades do ignoto e pelo bem estar com que os seus descobrimentos e invenções dotam as sociedades, pelo progresso emfim [sic] que ella faz seguir á humanidade.

As sociedades modernas não executam essa marcha para o futuro sem o esclarecimento desse espirito scientifico.

O adiantamento dessas collectividades só se realiza proveitosamente sob a acção sugestiva que a mentalidade superiormente educada exerce sobre as diferentes classes em que ellas se dividem.

A sciencia avalia-se principalmente hoje pelo seu estado dynamico, de constante evolução e actividade; outr’ora reconhecia-se pelo seu modo de ser estatico, que o dogmatismo se esforçava por tornar imutavel. Nas passadas edades [sic] o sabio era monopolista da sabedoria, dotado de o poder devinatorio, de dom prophetico. Foi assim nos tempos que podem chamar-se encyclopedicos, nos quaes aos homens de saber competia um agregado de disciplinas de forçada ligação umas ás outras. Manteve-se aproximadamente da mesma fórma até a Encyclopedia propriamente dita, que o seculo XVIII aperfeiçoou, dando-lhe mais latitude e que o seculo passado aluiu, rompendo esses moldes demasiado estreitos para a magnitude dos conhecimentos modernos e insuficientes para as exigencias mentaes da actualidade.

Até essa epoca, quase diriamos era facil ser-se sabio, tão reduzido o numero de objectos que constituiam os elementos de saber e a pequena bagagem eruditiva que a cada um pertencia. O aumento prodigioso dos assuntos e questões pelas quaes tem de se repartir a atenção dos homens que se dizem doutos, particularmente no cyclo transacto, modificou profundamente esta concepção do que seja o sabio.

A idéa corrente para muitas pessoas de que ser sabio é alcançar a maior quantidade de conhecimentos sobre os mais variados objectos é considerada uma noção falsa. Um sabio reduzido unicamente ao seu peculio de saber não valeria mais que um livro ou um repositorio. É necessario fazer dos verdadeiros homens de sciencia um conceito mais elevado e mais estavel. Elles devem distinguir-se pelo espirito de investigação, que os obriga constantemente a perscrutar os mysterios com que o desconhecido lhes estimula a curiosidade, possuir em elevado grau o espirito de observação, desenvolver a iniciativa, donde dimanam as sucessivas descobertas e invenções, que se multiplicam assombrosamente e nos maravilham; deve ter alem disso uma paciencia infatigavel, que permitta a pesquiza serena da verdade e a pertinacia para vencer os obstaculos, que costumadamente se opõem á sua conquista.

São estes os predicados que synthetisam o espirito scientifico, o qual é indispensavel a todo o progresso social não só para preparar o advento ás carreiras publicas, que exigem uma preparação intelectual mais cuidada e completa, mas para desenvolver as qualidades de inteligencia, vontade e iniciativa, que são as condições essenciaes desse progresso, como elle deve ser comprehendido, segundo as tendencias democraticas do presente. Toda a nossa educação scientifica deve pois ser remodelada em vista destes principios e de acordo com elles reorganizadas as instituições sabias, tanto de ensino como proficientes, academias, sociedades e estabelecimentos onde se cultiva e deve aperfeiçoar qualquer ramo de sabedoria.

* * *

Ha quem diga que o ensino publico progrediu entre nós desde o final do seculo anterior. Não o duvidamos quanto ao aumento absoluto de instrucção e ao desdobramento das varias classes escolares; certas materias d’antes ministradas na Escola Polytechnica hoje o são nos lyceus, o que não priva que a maneira como se faz esse ensino seja em todo o caso defeituosa e anachronica. As reformas em todos os graus teem influido apenas superficialmente no ensino, deixando de lado a tarefa educativa, que é consideravel. Poderiamos dizer no nosso pais conforme a phrase de Lippmann no Congresso da Sociedade Francesa para o adiantamento das sciencias, em Lião, que o ensino oficial padece ainda do «vicio burocratico e do pedantismo antigo regimen».

Todas as reformas serão inproductivas emquanto se conservarem estes velhos processos, rotineiros em relação ao moderno espirito scientifico, que não reconhecemos no nosso meio senão muito limitadamente e de uma acção quase estrictamente individual. A utilidade de quaesquer alterações legislativas concernentes á instrucção será sempre problematica se não tratarem de modificar profundamente os methodos pedagogicos, hoje tão radicalmente diversos, sob a influencia da evolução de todas as sciencias, do que eram antigamente.

Todo o systema de concursos e de exames se baseia demasiadamente em provas de memoria, que não envolvem um saber convicto, um trabalho de raciocinio independente e de observação propria. Impera o livro por toda a parte; por toda a parte se faz abuso de compendios e, forçoso é dizel-o, de maus compendios, que são por vezes instrumentos de martyrio para os alumnos, pela sua incomprehensibilidade.

Este inconveniente, que começa a sentir-se nas escolas primarias, onde o estudo se faz já de uma maneira um tanto abstracta e demasiado theorica, sem procurar a adaptação do individuo ao meio em que deve proseguir [sic] a sua actividade, reconhece-se em toda a sua plenitude nas escolas secundarias e superiores, nas quaes as cousas se não acham ainda geralmente organizadas para dar ao ensino essa feição utilitaria e pratica, dominante noutros paizes, por exemplo, na America e na Suissa, para deixar aos que aprendem a livre curiosidade e independencia de interpretação, para simplificar o trabalho do alumno e do professor, tornando a aprendizagem mais proficua e agradavel, aumentando e ampliando os cursos de trabalhos praticos, a vista de tudo que possa oferecer a uns e outros a variedade dos pontos de vista, o assunto interessante de lições de cousas, as relações daquillo que se lhes mostra com a pratica da vida.

A instrucção publica enferma de muitos erros graves dos quaes um dos mais perniciosos é a preparação apressada e imperfeita, em vista de um certificado de exame para documentar habilitações apenas theoricas, quando muito.

Não podemos demorar-nos em pormenores, para não alongar demasiadamente este artigo; por isso nos limitamos a desejar que um dos objectos mais importantes sobre os quaes ha de incidir a attenção do governo da Republica seja a situação efectiva da cultura scientifica no paiz e as reformas que devem remediar essa situação, prejudicada por varios preconceitos e pelo habito e rotina, que nos deixou atrazar mais de cincoenta annos a este respeito.

J. BETTENCOURT FERREIRA


Referência bibliográfica

J. Bettencourt Ferreira - "Chronica scientifica / O espirito scientifico e ensino publico" in Diário de Notícias de 1 de Novembro de 1910, nº. 16154, p. 1 (c. 3-4). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=1976.



Detalhes


Nome do Jornal


Mostrar detalhes do Jornal

Número

Ano Mês Dia Semana


Título(s) do Artigo


Título

Género de Artigo
Opinião

Nome do Autor Tipo de Autor


Página(s) Localização do Artigo na(s) página(s)


Tema
Outros

Educação Cientifica
Palavras Chave


Notícia