Assumptos do dia
Questões medico-sociaes
CIX
O homem como agente directo da propagação da peste é factor decisivo
A investigação scientifica é sempre dificultosa por muitas razões que são entendiveis, e é sobretudo proveitosa a todos e trata de pontos que vivamente interessam o publico, e mormente na hora em que mais o interessam.
N’este caso estão as questões de propagação e génese da peste. Vamos, por isso, resumil-os em breves notas confinante a actualidade, embora n’estes estudos se deva sempre á cautela deixar alguma coisa para, digamos assim, a actualidade do dia de amanhã. Assim, a questão da irradiação e da acção das epidemias da peste desenrola-se em 3 actos. No primeiro, entra em scena o homem, como o agente directo da propagação da doença; no segundo, entram os objectos inanimados; no acto final, o rato domina e occupa quasi a scena toda. Começou-se, portanto, pela applicação ao homem, em cheio, de medidas rigorosas de isolamento e desinfecção. Todavia, a consideração de que individuos procedentes de regiões infectadas, e até mesmo que individuos infectados, não transportavam nem determinavam em muitos casos o apparecimento da doença; a circumstancia [sic] de que pessoas sem contacto algum com essas procedencias ou com esses individuos adoecem de peste; o caso de localidades onde grassa a peste terem e continuarem a ter pontos indemnes de tal doença apesar das suas frequentes relações entre si; a pouca frequencia de casos em medicos e enfermeiros que tratam dos doentes pestosos, e ainda outros termos contrariantes d’essa noção da contagiosidade da peste de pessoa a pessoa, salvo as hypotheses das fórmas pulmonar e septicemica, fizeram desconfiar de que este mal fosse antes uma doença da localidade do que propriamente uma doença primitiva no homem, ou, por outra, que dependa sobretudo da communicação com os doentes; e que alguma nova causa tivesse maiores responsabilidades do que estes na propagação e movimento das epidemias d’este morbo.
Os casos nas localidades infectadas occorrem por modo anomalo, não mostrando qualquer lei a que obedeçam na investida ás casas proximas, raramente apparecem casos secundarios no mesmo domicilio; apparecem, comtudo [sic], em habitações de todo separadas ou mesmo isoladas, e cujos habitantes nenhum contacto com pestosos poderiam ter tido; logo, é por que ha algum vehiculo da doença, que não póde ser o já citado, que consegue passar de uns domicilios para outros, vencendo os ferrolhos e aldrabas e todos os isolamentos. Ha, com effeito, é o rato. Casa que não tem ratos, não tem peste.
O homem pestoso começou, então, adeixar de ser olhado como a origem directa do perigo. A contagiosidade de pessoa a pessoa, por conseguinte, passou para um plano inferior, passou a ser um factor secundario na etiologia e epidemiologia da peste. Não quer isto dizer que não sejam uteis e até precisos o isolamento e a desinfecção.
Em continente, o problema da peste entrou a mirar um outro aspecto: o da transmissão pelos objectos inanimados. Não tardou, porém, a reconhecer-se tambem não ser o contagio indirecto o modo provavel da propagação da peste. O seu bacillo nunca foi encontrado no chão, nas paredes, nas mercadorias ou outros objectos inanimados. Claro está que continuamos a fazer reserva do caso de peste pneumonica, em que tudo que provenha dos enfermos constitue perigo grave, sobrelevando a tudo o escarro do doente dessa lethifica fórma.
A tudo isto faltava a pedra de toque do experimentalismo. Veio mais tarde, e indubitavel.
Veio Koch, e não só elle, affirmar que os ratos devem ser considerados como factores capitaes da propagação da peste, e até como causa necessaria da diffusão desta doença, e ainda que ella é uma affecção do rato, da qual secundariamente é affectado o homem. Mais ainda. Entrou a reconhecença de que a peste dos ratos vem antes do primeiro caso de peste humana, de que a epizootia do rato e a epidemia humana se acompanham em equidade e equilibração, e tambem que a passagem da infecção do rato ao homem é ponto incontrastavel.
Como, porém, se faz a transmissão da doença do rato para rato, e do rato para o homem? Ora, os ratos sãos podem conviver na mesma prisão com ratos pestosos sem se infectarem, no caso de não haver pulgas, o que logo revelou a influencia d’estes parasitas dos temiveis roedores, como agentes da transmissão da peste entre os ratos. Depois, a noção das relações e do movimento das epidemias de peste humana segundo a preponderancia das especies de ratos e de pulgas em cada localidade, e a da migração das communidades d’estes roedores que é um termo da questão bem averiguado, vieram esclarecer a ligação escura da marcha arrastada da epizootia com a progressão lenta das epidemias, e ainda a demora da doença nos pontos que uma vez se infectaram. Nada mais facil de comprehender do que a demora, portanto, de uma epidemia de peste em uma localidade, cujas habitações sejam velhas, sem luz, acoutando grande numero de ratos.
A transmissão ao homem faz-se egualmente pela pulga que parasita o rato. Toda a pulga, porém, ou sómente algumas especies? Nos paizes quentes, a pulga mais frequente nos ratos é a Cheopis; nos paizes frios, é certo, esta pulga tambem os parasita, mas, prepondera outra especie, a Ceratophyllus fasciatus ou a Ctenophyllus musculi. Que bonitos appellidos!
Entenda-se, todavia, que sendo estas especies privativas dos ratos, ainda podem elles ser parasitados casualmente pela pulga do cão e do gato, e até mesmo pela pulga do homem, a Pulex irritans. O que não quer dizer que outros insectos sugadores não possam tambem propagar a peste, já directamente do rato ao homem, já talvez maculando os alimentos. Esta hypothese é de receber. A ajudar todos estes factores, é opportuno relembrar que a insalubridade geral influe na extensão e virulencia das epidemias, havendo quem diga mesmo que a peste é uma doença de porcaria e que onde haja ar, luz e aceio [sic], não poderá medrar muito o bacillo virulento da peste. Seria curioso e interessante para agora e para sempre, conhecer quaes as especies de ratos e de pulgas que os parasitam com predominio na rataria de Lisboa. Na peste dos Açores, foi notado que a Cheopis, a mais hostil de todas para nós, não era a pulga mais preponderante nos ratos da ilha Terceira. Já assim não succedia nos ratos de outras terras açoreanas.
No momento actual em que esta questão nos preoccupa, varias circumstancias naturaes nos são propicias.
Uma é a de ser a época em que ha menos ratas fecundadas; em novembro a fevereiro, dois por cento; em março e abril, seis por cento; em maio e junho, doze por cento; decrescendo em seguida a fecundidade destes animaes até dezembro que se expressa pela reducção apenas a um por cento. Estas observações são de Gotschlich, no Egypto, e encontram-se no primoroso trabalho de Carlos Fortes.
Ora, é certo que a repullulação dos ratos, augmentando o numero de animaes mais susceptiveis, dá sempre maior extensão ao movimento epidemico, e que o cimo da curva da procreação deste animaes corresponde ao maximo de casos de peste, em qualquer localidade por ella infectada.
Conhecem-se os periodos do anno em que a peste por força tem de augmentar ou de diminuir.
A outra circumstancia favoravel é a de que, entrando-se agora na estação invernosa, diminue muito o numero de pulgas, o que, por esta razão, explica egualmente no tempo mau uma queda sazonal bem comprovada das epidemias de peste.
Os periodos epizootico e epidemico mais ou menos activos da peste podem orçar-se pelo maior ou menor numero de pulgas em giro.
Depois, as observações já feitas não confirmam que os ratos da capital tenham peste, o que é grandemente animador.
Emfim [sic], uma boa nova mais: o bacillo da peste é um bacillo pifio; qualquer dos nossos desinfectantes usuaes o extermina facil e completamente. Um delles é mesmo instantaneo. O calor humido e a agua a ferver, tambem o annullam em poucos minutos.
Estão a ver que a sua braveza não é dura. Antes, pelo contrario.
G. ENNES.
G. Enes - "Assumptos do dia / Questões medico-sociaes / CIX / O homem como agente directo da propagação da peste é factor decisivo"
in Diário de Notícias
de 19 de Novembro de 1910, nº. 16172, p. 1 (c. 1-2). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=1980.