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Texto da entrada (ID.1984)

Chronica Scientifica

Universidade de Lisboa

Em precedentes artigos o nosso illustre escritor e brilhante jornalista, sr. Afonso Vargas, chama a atenção para o assumto [sic] que se resume nas palavras da epigraphe e, com a costumada elegancia de phrase, que em nada prejudica a profundeza do conceito, antes torna as suas afirmações mais sugestivas, toma a generosa iniciativa de recommendar a fundação em Lisboa de uma universidade, congregando para esse fim os elementos, aliás valiosos, que existem dispersos pelos varios estabelecimentos de ensino superior da capital.

Entendemos do nosso dever civico e patriotico dizer tambem algumas palavras em prol da mesma idéa alevantada [sic], cuja discussão reputamos de um grandissimo interesse para o pais.

Antes de entrar em considerações, daremos porem um testemunho que mostra pelo menos que a idea do estabelecimento de uma Universidade em Lisboa está no animo de muito boa gente pensante e imparcial, que nos conta já na posse dessa instituição, a qual nos faria subir de valor aos olhos nas nações cultas.

Muitas vezes nos tem sucedido receber dos nossos correspondentes estrangeiros cartas ou impressos com endereço para a… Universidade de Lisboa, de facto não existente, mas virtualmente acreditada lá para elles e consubstanciada em institutos importantes de ensino, principalmente na Escola Polytechnica, a que as mais das vezes se refere aquella designação, o que tem uma significação psychologica particular. Representa ella ao menos a expressão de uma crença honrosa para nós, a qual se pode e deve resolver num desideratum para ser meditado e resolvido pela parte pensante e dirigente da nação.

Esta suposição, que nada tem de audaciosa, representa felizmente o credito de que, sobre cousas de engenho e arte, pode gosar uma nacionalidade que teve, em seculos passados, pelo nobre esforço dos seus homens, pela audaacia e heroicidade dos seus navegadores, pela habilidade dos seus politicos e diplomatas, pelo talento dos seus literatos e philosophos e ainda pela delicada e pujante intelectualidade de muitas mulheres notaveis, teve tamanha influencia nos destinos dos povos, nos progressos da humanidade, a favor das artes, das letras, das sciencias, da politica, em toda a parte; que deu brilho a academias e universidades estrangeiras, emprestando-lhe um pouco da energia mental do escol dos seus intelectuaes de outros tempos, como Damião de Goes na cathedra de Lovaina; que possue uma lingua rica e uma literatura gloriosa, escolhida e abundante em todos os generos; que tem tido os seus theologos, os seus mathematicos, os seus jurisconsultos, os seus pensadores e poetas, os seus dramaturgos e oradores, como teve e tem os seus pintores celebres, os estatuarios, os artistas da côr e da forma, do desenho e da ceramica, desde Nuno Gonçalves até Bordallo Pinheiro, os seus inventores de fama universal, Bartholomeu de Gusmão e Pedro Nunes, os mestres conhecidos dos eruditos, Garcia da Orta e Ribeiro Sanches, Manuel Alvares e toda essa pleiade de portugueses celebres, que nos seculos XVI e XVII illustraram o nome patrio em institutos estrangeiros e o fizeram valer aos olhos da Europa, ainda maravilhada das façanhas lusitanas dos seculos XV e XVI.

Uma raça que soube, de maneira tão conspicua, honrar e comprehender as cousas mais transcendentes do entendimento em épocas diferentes, tem o direito de possuir uma vasta fabrica em que se edifique o pensamento dos novos e se cultivem e apurem as altas faculdades daquelles que, pela elevação de seu espirito, pelo apuramento de especiaes aptidões, devem vir a ser alguns dos mais prestimosos orgãos do machinismo nacional, factores importantes de aperfeiçoamento e regeneração do meio social.

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Á primeira vista pareceria superfluo insistir no assunto; mas temos motivos para crer que elle não entrará no espirito das gentes, e não a força de discussão e de alvitres.

Não resta duvida de que os paises mais adiantados devem os seus mais notaveis progressos á creação e desenvolvimento das suas universidades, que por toda a parte se multiplicam e ampliam entre os povos civilizados, enquanto nós estamos reduzidos a essa triste unidade constituida pela Universidade de Coimbra, evidentemente atrazada e incompleta, numa lamentavel decadencia e á qual faltam recursos, professores, laboratorios, etc., o que inutiliza qualquer esforço bem intencionado para lhe fazer recuperar o antigo prestigio. Já não era pouco que ella se resentisse [sic] do atrazo de mais de cincoenta annos, que se nota nas principaes escolas, mas ha mais: a sua organização está fóra do espirito scientifico da nossa época e não póde de modo nenhum corresponder ás exigencias do saber moderno e da preparação que devem ter os profissionaes que ella ainda aspira a formar e que, mercê dos diplomas que faculta, hão de entrar na vida publica e constituir as classes dirigentes.

Reformar uma congregação secular enraizada no erro é trabalho mais custoso e inglorio do que fazer de novo, crear instituições novas. É comparavelmente o mesmo que se tem passado com certos edifícios particulares, que se pretende reedificar e adaptar ás funcções publicas. Fica uma obra dispensiosa, que nunca chega a corresponder aos fins para que é destinada. Sucede isso, por exemplo, com os hospitaes transformados de antigos conventos; é o que se passa com o edificio das côrtes, com o tribunal da Boa Hora e outras edificações, que apesar das artificiosas diligencias dos architectos, nunca chegam a ficar apropriados para as elevadas e especiaes funcções a que os querem aplicar.

Haveria portanto a conveniencia de instituir algures uma universidade moderna, de novos moldes, seguindo uma orientação mais consentanea com as necessidades sociaes de hoje e julgamos que seria facil agrupar as diferentes faculdades, dar-lhes uma direcção comum e dotal-as com os materiaes, o pessoal e os recursos necessarios para o seu bom funccionamento.

Teriamos, por exemplo, em Lisboa uma faculdade de sciencias constituida na Escola Polytechnica; uma faculdade de medicina, uma faculdade de letras, dando ao Curso Superior uma remodelação condigna com essa graduação e creando uma escola de Direito que facilitasse aos estudantes, sob pontos de vista novos, o conhecimento da legislação, da economia politica, da jurisprudencia, das modernas ideas criminaes e da evolução penal que as acompanha, baseada no estudo da anthropologia, da ethnographia, da psychologia normal e pathologica.

A multiplicidade destes estudos, que seria para a velha universidade coimbrã uma imensidão incompativel com o seu estreito ambito, poderia realizar-se sem grande trabalho reunidas as escolas superiores da capital e dando-lhes uma direcção superior no plano elevado que convém á cultura intensiva da inteligencia, de par com a extensão da sciencia do nosso seculo. Cabem dentro deste plano, que não peca de certo pela ousadia, nem pela originalidade, por isso que está, a bem dizer, na ordem natural das cousas, as mais profundas remodelações dos programas e dos methodos de ensino, no seio das diferentes faculdades, assim como a abertura de laboratorios e gabinetes de trabalhos, onde os estudantes fossem buscar os meios praticos com que a experiencia fundamente o saber, facilita e estimula o espirito de iniciativa, preparando technicos adestrados para as diferentes carreiras, de modo que os seus conhecimentos podessem reverter em proveito da nação, que dispende forçosamente e deve dispender com taes instituições, e teria portanto a vantagem de bem se governar com os doutos e technicos nacionaes, sem fazer largo emprestimo á habilidade de especialistas estrangeiros, tanta vez prejudiciaes ao pais e por mais de uma razão.

Conviria porem reformar no possivel todos esses nucleos universitarios que aqui temos, melhorando principalmente as condições do ensino, verdadeiramente miseravel em certas escolas, para depois os integrar nessa vasta organização pedagogica entresonhada por alguns amantes do adiantamento scientifico da nossa terra.

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Nós somos de preferencia pela creação de mais de uma universidade que juntamente com a de Lisboa e a de Coimbra, sensatamente modificada, derramassem em diversas regiões do pais as luzes da sciencias, não em instituições de luxo, por meio de cursos complicados, mas pelo contrario, com uma organização regional, ministrando sómente em cada uma a instrucção theorica e technica apropriada ás necessidades dessas regiões, como nas modernas universidades da Suissa, da Belgica e de França, que nos fornece nesse ponto os mais bons sucedidos modelos. É assim que na universidade de Grenoble existe desde 1894 um curso de Electricidade industrial, correspondente ás exigencias locaes de uma região que utiliza largamente essa fonte de energia natural modernamente denominada – hulha branca –; a universidade de Lille possue desde 1904 um curso sobre questões economicas, que interessam á região do norte de França. A de Dijon tem um Instituto annexo de agricultura e oenologia, o qual comprehende um curso de chimica agricola e um jardim de experiencias.

Na Universidade de Besançon encontra-se um certo numero de estudos technicos, que dizem respeito muito directamente á industria local – a relojoaria.

Ha ainda nesta universidade um Instituto de physica dotado de um ateliar e de uma forja e que prepara para obter o diploma de Electricidade industrial e aplicada. Concede ainda um diploma de Agricultura, que aproveita aos filhos dos agricultores e aos regentes agricolas e florestaes.

Mais e muitos mais exemplos poderiamos citar de outras escolas, se não fosse em demasia extenso fazer-lhes aqui sequer ligeira referencia.

Em geral o caracter dominante destes estabelecimentos, original e fecundo, sobresae [sic] da união do ensino, que fornece a educação scientifica, com o ensino technico especial que, numa variedade bem aproveitada liberaliza os meios do valorizar as riquezas naturaes dos varios recantos. Não nos parece que fosse difícil adoptar entre nós estas inovações tão praticas e uteis.

Um pouco de boa vontade e o desprendimento imparcial de preconceitos e convenções egoistas daria sem duvida maiores resultados do que as concepções phantasiadas, que por ahi se estão gerando sobre as reorganizações em materia de ensino superior e especial.

J. BETTENCOURT FERREIRA


Referência bibliográfica

J. Bettencourt Ferreira - "Chronica Scientifica / Universidade de Lisboa" in Diário de Notícias de 13 de Dezembro de 1910, nº. 16195, p. 1 (c. 3-4). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=1984.



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