Assumptos do dia
Questões medico-sociaes
CXII
Apparelhando as armas e os animos contra a colera…
Conhecido está hoje que a epidemia colerica segue as estradas que o homem frequenta, e que o faz tão velozmente como os mais acelerados meios de communicação que elle abre e inventa. O seu agente especifico é um vibrião, não espovulado, que se aloja no apparelho digestivo, e que, por meio de toxinas que segrega, determina a doença assim chamada, e cujo quadro clinico é typico. Pois são esses seres infinitamente pequenos que, eliminados pelas dejecções e vomitos dos doentes, vão, directa ou indirectamente, pelo contacto com essas materias, pelas mãos das pessoas que convivem ou tratam dos colericos, pelas roupas e utensilios, pelos alimentos ou agua contaminados, e até pelas moscas, propagar e transmittir a terrivel molestia. Mas, entende-se bem, no organismo o principio inficioso está sempre limitado ao tubo digestivo, ahi se introduz pela agua ou pelos alimentos, ou é levado á boca pelas mãos infectadas ou por qualquer objecto contaminado. Esses vibriões penetrando na via intestinal, nem sempre são capazes de produzir a doença, pois é certo que individuos precedentes de pontos infectados, e não tendo tido e podendo mesmo nunca ter colera, podem emittir esses agentes pathogeneos com as materias fecaes, e, por esse meio, contagiar e infectar outras pessoas. A agua de alimentação é de tudo o vehiculo mais frequente da epidemia e o laço preponderante entre os diversos casos e a sua mais ou menos larga movimentação.
A trasnmissão [sic] pelo ar é muito duvidosa, os germens colericos que elle possa transportar hão de estar já bastante feridos na sua vegetalilidade e virulencia. A incubação é curta; de algumas horas até 5 ou 6 dias.
A colera é classificada como doença evitavel, os meios de a evitar estão estudados; querer applical-os é ter a certeza da ganhada victoria.
Postas estas considerações, e reconhecido o perigo que corremos de uma invasão de colera, no nosso continente, tudo leva a crer que esses meios de rigorosa defesa estejam todos ou já em funcção ou preparados para a melhor opportunidade. É, por tanto, este o momento de affiar as armas e os instrumentos de guerra, e de levantar o bico dos guerreiros e o animo da população.
Assim é de acreditar que a pesquiza solicita dos primeiros casos e o isolamento dos doentes, pois que hospitalisal-os sempre que as circumstancias [sic] o permittam é em principio de tudo o melhor, fossem já bem considerados; que o exame e combate preventivo e immediato dos possiveis porteurs e a sequestração dos contactos se esteja já fazendo ou esteja assegurada no segundo caso; que o plano estrategico da hospitalisação dos epidemiados e os meios de a effectivar, bem como os da prompta assistencia medica aos atacados, existam elaborados e em via de praticabilidade; que a analyse reiterada das aguas de alimentação, visto que a colera é o typo das doenças de propagação hydrica, se esteja fazendo de modo a dar logo o rebate da presença do vibrião, se por essa origem elle nos entrar no organismo; que a esterilisação das materias fecaes e dos vomitos dos colericos no tratamento collectivo esteja preparada por o modo mais efficaz; que se não devem fazer esperar instrucções claras e precisas para o povo saber defender-se com a testificação notoria de que não ha elixires para a colera; e, para tudo epitomar, que o pessoal a destacar e repartir para os pontos suspeitos se encontre já adestrado na pesquiza do bacilo e nas praticas da desinfecção moderna, que constituem os melhores instrumentos de açoite manejados para a nossa gente armada, tudo isto e mais coisas que seria longo enumerar – desnecessario até para a competencia das auctoridades sanitarias – conjunctadas devem ser com a fixação, tanto quanto possivel, das melhores normas do tratamento da doença, e com a nota da escolha dos methodos de desinfecção e seus casos especiaies, e até dos desinfectantes que devem ser applicados na especie e condições em que estes preparados são chamados a dar as suas provas contra o microbio colerico.
É de presumir que todos estes pontos capitaes da defesa contra o accesso da colera tenham sido precautelados por quem tem o dever de os aconselhar e assegurar; o contrario seria abrir as portas da fortaleza aos esquadrões de desgraças que nos ameaçam. Da boa vontade e decisão do ministro não ha que duvidar, tanto mais que é elle um medico muito distincto; os outros teem de cumprir o seu dever, elucidando todo o problema, dominando as ignorancias locaes e as faltas da nossa educação hygienica, e decidindo a causa a nosso favor pela força do seu ferreo braço. Todavia, não haverá ainda, no terreno preventivo e restrictivo, algumas medidas a tomar, algumas diligencias a sustentar e a proseguir? Não, de certo, por falta de boa vontade; mas, esta questão pelo seu severo aspecto, como dever social e scientifico, deixa pelo menos o espirito absorto, perplexo, inquieto.
A respeito do tratamento da colera, penso que haveria vantagem em que os nossos mais auctorisados professores fizessem algumas conferencias para orientar e fixar este ponto dubio e implexo. Assisti á epidemia de colera de 1856, como estudante da escola de medicina de Lisboa; o que os clinicos prescreviam então, como remedio soberano, era o opio em compostos diversos. Hoje não póde ser assim; o opio e toda a medicação cistente não resolvem o problema, a agua de arroz albuminosa, o laudano, o cozimento branco ou o acido lactico de fraco poder bactericida, nada tem que vêr com a precisa antisepsia gastro intestinal, unico methodo talvez capaz de combater a força toxica do microbio colerico e as suas toxinas. Na medicação tonica e estimulante, tão precisa a fim de levantar as forças do doente e mitigar os phenomenos dolorosos como as caimbras, temos hoje novos agentes sendo bom definir-lhes o valor e as preferencias no caso sujeito. O mesmo a respeito do sôro Hayem e outros.
Ninguem se poderá offender com este alvitre, nem sentir-se por sua causa affrontado no saber pessoal e intimo. Os conscienciosos e os prudentes só poderão applaudir-me.
A questão da desinfecção na especie colera é primordial. Começa á cabeceira do doente e acaba depois da sua cura ou morte. O mais importante de tudo é a rigorosa desinfecção das fezes e vomitos.
Na occasião em que fui dispensado da direcção dos serviços de desinfecção da capital, estava eu, na previsão de uma epidemia de colera, auxiliado pelo habil pharmaceutico, Adelino Bairrão, que, para isso, se me offerecera desinteressadamente, a preparar formulas diversas para serem applicadas nas differentes hypotheses, segundo a natureza dos meios e as condições do objectivo que fosse preciso metralhar. Conhece-se hoje tão bem o habitat do agente colerico, a via da sua penetração no organismo e egualmente de sua eliminação, que ha toda a precisão e segurança em alguns dos nossos desinfectantes para destruir o germen da colera e obstar á diffusão da molestia.
Nem todos nem todas as technicas merecem para o caso o mesmo conceito. Digo-o com a auctoridade de quem, em largos annos, se especialisou n’esta materia, merecendo do então só director do serviço municipal de hygiene da cidade do Porto, e hoje illustre inspector geral dos serviços sanitarios, em cartas que conservo por me serem muito gratas, a honra de pedidos varios de elucidação e conhecimento de pontos diversos da desinfecção publica, acompanhados sempre do receio de ser importuno – como se tal cousa fosse possivel? – e da justificação de tantas impertinencias, como dizia em seus escriptos, por se dirigir ao signatario d’estas linhas, a quem, segundo a sua phrase intima e mimosa, chamava-o
«Apostolo da desinfecção em Portugal»
Exaggeros da affectuosa consideração e lealdade de quem empunha agora o sceptro altivo da saude publica.
G. ENNES.
G. Enes - "Assumptos do dia / Questões medico-sociaes / CXII / Apparelhando as armas e os animos contra a colera..."
in Diário de Notícias
de 16 de Dezembro de 1910, nº. 16198, p. 1 (c. 1-2). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=1985.