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Texto da entrada (ID.1990)

Assumptos do dia

Questões medico-sociaes

CII

O medo

(…)

Ninguem, em sua vida, deixa alguma vez de ter medo, ou é insusceptivel de o vir a ter. O que é o medo? É vergonhoso ou é natural e mesmo salutar? (…).

Um aspecto da questão: o medo pelo perigo certo.

Charles Richet accentua que a solidão, por que nos importa a certeza de que ninguem nos virá proteger, determina o medo. Outro aspecto: o medo do vago, pelo isolamento.

O desconhecido é do mesmo modo, como as trevas, uma causa evocadora do medo. Terceiro aspecto da mesma questão: o medo imprecisado pelo ignoto. Estes dois casos, menos instinctivos e menos raciocinados do que o do perigo manifesto e imminente.

(…)

O grande Talma, quando estava em scena, estava sempre aterrado e desmaiado.

Este é já um medo quasi morbido, por uma especie de nervosismo, ao passo que as fórmas já referidas entram no quadro do medo physiologico, como é tambem o das facas, o das armas de fogo, o dos espaços muito vastos ou fechados, o dos elementos naturaes, o dos animaes, ou o terror da morte.

Assim, o medo physiologico póde atacar todos sem excepção alguma; e quem disser o contrario, se diz fingidamente é o legitimo fanfarrão, se o diz convencido é um imbecil ou um myope, que não sabe reconhecer e aquilatar os perigos, ou então um nevrotico [sic] de um genero especial.

Póde-se todavia não ser um nevrotico e não ter sobresaltos [sic] de medo.

(…)

Affirma Garrett que o medo em vez de ser uma vergonha e um ridiculo, é uma reflexa [sic] de defeza e protecção. Existe em todos os seres da escala zoologica; somente os outros animaes não sabem porque teem medo, e o homem sabe quando deve ter medo e as causas porque o tem.

Esta emoção, accentua o mesmo escriptor, deve distinguir-se do medo pathologico que é uma phobia, uma doença do systema nervoso, de tratamento variavel conforme a natureza e o fundo d’esta, e constitue pela sua parte e pelo contrario um elemento psychico e normal que se não póde abolir ou ridiculisar. Necessario é mesmo á conservação e á defeza da existencia, dando nascença a actos multiplos necessarios e uteis para combater o elemento nocivo que a ameaça. Até quando é exaggerado é ainda physiologico, e a sua demasiada intensidade é apenas logica, parallela e proporcionada ás reacções de exaltação determinadas pela grande emotividade dos que assim o teem.

N’este caso, o medo é penosa funcção de um temperamento especial, ou é mesmo um temperamento singular e exquisito [sic].

Com o medo pathologico – verdadeiras phobias – o caso e [sic] muito differente. Quem o soffre é um verdadeiro doente, que chega a crear perigos imaginarios, mesmo a affrontar perigos muito[,] muito graves para fugir a levissimos receios, que tem medos em excesso e por perversão; e, n’estes doentes, existe um estado particular do systema nervoso, em que a emoção morbida e as suas fórmas e symptomas são pouca coisa, a emotividade, que é o fundo da molestia, é que é tudo para preparar as emoções anormaes.

E tão illogico e contradictorio chega a ser, que o medo physiologico fornece expedientes para se evitar ou combater o elemento perigoso, ao passo que o medo pathologico não tenta sequer combater nem evitar os perigos, ou combate-os por um modo inopportuno, insensato, ás vezes até mais perigoso que se quer conjurar. Ha doentes d’esta especie, que se matam por medo angustioso da morte.

O tratamento pelos medicamentos tonicos, pela hydrotherapia, pela electricidade e pelo ar puro pódem fazer algum bem aos doentes de uma tal constituição nervosa; nada tem que ver com o medo physiologico, que é essencialmente a expressão repulsiva da dôr e da morte. Como tal, todos os homens, mesmo corajosos, o pódem ter. A cobardia é uma coisa, outra é o medo.

(…)

G. ENNES.


Referência bibliográfica

G. Enes - "Assumptos do dia / Questões medico-sociaes / CII / O medo" in Diário de Notícias de 27 de Julho de 1910, nº. 16057, p. 1 (c. 1). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=1990.



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