Base de Dados CIUHCT

Divulgação Científica em Jornais



Texto da entrada (ID.1994)

Chronica scientifica

A domesticação e o ensino dos animaes, principalmente dos macacos superiores – Atenção que provocam os anthropoides – «Consul» em Lisboa e em Paris – Relação entre o domador e o animal – Similhança dos macacos com o homem – O que ha de verdadeiro e inexacto a este respeito – Desenvolvimento divergente de uns e de outros – Idéa actual sobre a descendencia de ambos – Um pouco de historia e factos averiguados ácerca do chimpanzé – Docilidade deste no estado captivo – Importancia destes factos perante a zoologia aplicada.

Os animaes adestrados, ferozes ou domesticados, dão sempre um espectaculo atrahente, por mais de um titulo curioso e interessante.

A domesticação e o ensino dos animaes rão [sic] teem na epoca presente, só por fim fornecer ao publico uma diversão agradavel ou emocionante; tem um lado philosophico, que não é para desdenhar, pelo qual o espirito se lança nas delicadas questões da intelligencia e instincto, de afectos e paixões dos animaes. Por outro lado esse ensino, que é uma arte com os seus requintes e os seus modernismos, tem um intuito pratico, que requer demorada atenção e encitamento, porque visa a tornar prestaveis ao homem, aproveitando-os com tino e propriedade, muitos animaes que a natural braveza parecia a principio excluir do trato domestico.

Pela sua faculdade de imitação, que nenhum outro animal possue, os monos que formam com a nossa especie a ordem dos Primatas, são os que mais se offerecem a cogitação sobre as relações do intellecto com o que se deva chamar propriamente instincto e são tambem os que de alguma forma fazem pensar no que poderia dar a domesticação guiada por uma observação scientifica, buscando prova em numerosos factos que os naturalistas desde longas epocas veem acumulando. De facto, estes grandes simios, que em razão da maior analogia com o homem teem a designação de «anthropoides» ou «anthropomorphos», tem sido e continuam a ser, pela sua forma, que mais o aproxima daquelle, pelos seus gestos, pelos seus costumes, pelas suas diabruras, os que mais atrahem as atenções de sabios e profanos: de naturalistas, viajantes, philosophos, simples curiosos, domadores ou emprezarios.

Em volta dessas especies quantas theorias arrojadas e revolucionarias, quantos problemas de aclimação e de domesticidade! Ao lado de observações exactas muitos exageros, apreciações erroneas, preconceitos e verdades a apurar.

As habilidades, as graças e as maldades dos macacos, bem como o seu exito, depois de convertidos em objecto de exibições de theatro ou de circo, não foram ainda assaz celebradas, porque o publico, avido de novidades e de commoções não deixa de concorrer pressuroso ao reclamo que as annuncia. Admira-se a esperteza do animal e a paciencia do homem. Neste esforço mutuo do adestramento e da imitação, ha, pode dizer-se, uma expressão de talento de parte a parte, alguma coisa que vae de um ao outro insensivelmente e que se exteriorisa em rasgos admiraveis de genio. É a conversão do trabalho lento, pertinaz, intelligente no clareamento e afinação do instincto, por circumstancias [sic] naturaes mais delicado e susceptivel de aperfeiçoamento e educação.

Hoje Lisboa toda acode a ver Consul que a desopila e diverte, como no anno passado Paris em peso se aglomerava para ver um chimpanzé homonymo daquelle, elevado ao mesmo grau intellectual e educativo. Não é comtudo [sic] novo o caso e coisas mais extraordinarias e dificeis de crer teem sido executadas por monos da mesma especie ou muito proxima.

Contam-se até factos pelo menos reveladores de um instincto maravilhoso, senão de um rudimento intellectual digno de melhor apreço e cultura.

É incontestavel a similhança que existe entre os gorillas, orangos, chimpanzés e o homem, similhança exagerada além do seu ambito scientificamente marcado. A sua estructura, a sua physionomia, a faculdade de se pôrem de pé e de aprehender os objectos com as mãos são o fundo dessa comparação, que o poder imitativo sem egual torna mais perfeita. O dito de Huxley pelo qual elle afirmou haver maior differença entre os macacos inferiores e os de mais elevada jerarchia zoologica, do que entre estes e a especie humana, acha a sua natural confirmação nos factos rigorosamente estudados pela sciencia moderna. A cabeça, a face, as orelhas, as mãos, os pés, as attitudes são os principaes termos dessa aproximação, particularmente nos individuos novos anthropoides, comquanto [sic] essa similhança tenda a apagar-se quando os monos envelhecem, o que se resente [sic] na forma geral como na finura instinctiva, sendo notavel principalmente nos pequenos chimpanzés e gorillas uma vivacidade que mais se pode emparelhar á do homem na tenra edade. Esta noção ha muito expressa por Vogt nas suas «Lições sobre o homem» tem a mais brilhante confirmação nas mais recentes investigações sobre os pequenos anthropomorphos mortos nos jardins zoologicos europeus.

O homem e o macaco desenvolvem-se a partir das primeiras edades numa direcção diversa, até conseguirem o typo definitivo do genero de cada um; simplesmente o mono adulto conserva, em todo o seu organismo uma caracteristica de infantilidade, que o fixa na assimilação com a creança humana. Não se pode pois affirmar com rigor que o homem descende do macaco, como algns [sic] tem suposto, levando demasiado longe o simile ente primatas.

A idéa dominante na sciencia actual é que os dois typos descendem de um tronco ou forma ancestral commum, cujos catactères se acentuam melhor nas formas infantis de qualquer dos generos mais proximas do typo primitivo (Vogt).

A discussão desta hypothese embrenhar-nos-ia em uma explanação anthropologica na razão inversa do espaço de que dispomos. O estudo cada vez mais cheio de curiosidade do homem e dos macacos fortalece dia a dia esta concepção e os factos de psychologia animal levantados na convivencia com aquelles animaes favorecem bastante esse modo de ver.

* * *

A primeira noticia autentica do chimpanzé encontra-se ligada ás primeiras conquistas dos portugueses em Africa. É com effeito sob o dominio luso neste continente que o inglez Battell se deu a estudar este animal, que foi visto pela primeira vez na Europa em 1641 e descrito 58 annos depois por Savage, missionario ao qual se devem noções regulares sobre os seus habitos. Tem por patria uma extensa região que abrange a Africa central e occidental, desde a Gambia até ao sul de Angola e se estende para oeste pela região dos lagos, comprehendendo a Uganda. Vive no estado selvagem na parte mais densa das florestas, agrupado em familias pouco numerosas, das quaes uma só femea faz p[a]rte. A sua força e a sua habilidade teem sido ultrapassadas pelo enthusiasmo da narrativa e crescem em inverosimilhanças de lenda. O chimpanzé timido e dificil de aproximar no estado selvagem é domesticavel e como tal se torna docil no captiveiro, capaz de um certo grau de aperfeiçoamento intellectual. Desta maneira um chimpanzé femea do jardim zoologico de Paris aprendeu a contar até 6 distinguia o branco das côres, embora não distinguisse umas das outras.

Por um esforço educativo prolongado o chimpanzé de Buffon caminhava sempre sobre os membros posteriores mesmo carregando objectos pesados. Era de uma indole bom, obediente ao menor signal. Sentava-se á mesa como uma pessoa; punha o guardanapo, sabia servir se do talher e levava o copo á boca assim como a chavena, na qual deitava elle proprio o liquido.

Factos de certa importancia atestam a tal ou qual intellectualidade destes animaes. Conforme o relatorio de um certo capitão de navios, Grandpré, um chimpanzé preenchia a bordo as funcções de grumete com relativa perfeição. Ferrava as velas, fazia girar o cabrestante, aquecia o forno de cozer pão, evitando cuidadosamente que os carvões cahissem no chão[.] Quando a temperatura attingia o necessario grau o bom do macaco ia advertir immediatamente o padeiro.

O chimpanzé que existia em 1876 no aquario de Berlim distinguia-se por uma intellectualidade acima do vulgar da sua especie, tratando de differente maneira as creanças e os adultos, os pequenos animaes e os grandes, afeiçoando-se a uns e repellindo os outros de uma fórma algum tanto racional. Imitava mesmo o acto de escrever, molhando a penna no tinteiro e tracejando no papel.

Um dia o chimpazé [sic] do Jardim Zoologico de Dresde achou-se só o tempo bastante para estudar a maneira de abrir a fechadura da gaiola. Conseguiu haver á mão a chave desta e escondeu-a debaixo do braço, voltando para dentro daquella. Quando tinha aso abria a porta com a chave.

Um facto que prova a proximidade tanto physica como moral dos monos em relação ao homem é a difficuldade que, conforme a experiencia de Wallace, se experimenta para crear um destes animaes recem-nascido. Comporta-se a todos os respeitos como uma creança e a sua incapacidade de se tratar sem auxilio maternal ou cuidado equivalente é inteiramente oposta á autonomia bem cedo adquirida em eguaes circumstancias pelos macacos de ordem inferior.

* * *

Como certos monos se prestam a acompanhar o dono e a seguil-o nos seus menores movimentos, a ajudal-o até em certos trabalhos dizem-n’o repetidas historias, algumas bastante dignas de credito e por assim dizer classicas para fundamentar a utilidade que de taes brutos se pode tirar no seu convivio com o genero humano.

Orangos e gibons são de ha muito exercitados na India a manejar os pancas, especie de leques suspensos, que se agitam por meio de uma corda, para ventilar os quartos. Não é de todo raro que os monos exerçam em algumas partes as funcções domesticas mais variadas. Quem não conhece ao menos uma anecdota engraçada a este respeito? A sua afectividade não padece duvida, ainda nos mais bravios.

Os modernos principios de aclimação e domesticação de animaes selvagens não derivam do empirismo cego mas especialmente dos estudos de uma sciencia – a zoologia applicada – que não é nova, mas cujos fructos mais sazonados são actualmente de maior proveito.

O proseguimento [sic] destes estudos num paiz essencialmente lavrador e colonial como o nosso seria de incommensuravel utilidade, porque tanto na metropole como nas possessões abundam as especies domesticaveis, cujo rendimento em materias primas e trabalho contribuiria em grande parte para o augmento de riqueza publica e particular, se fossem bem exploradas.

BETTENCOURT FERREIRA.


Referência bibliográfica

J. Bettencourt Ferreira - "Chronica scientifica / A domesticação e o ensino dos animaes, principalmente dos macacos superiores – Atenção que provocam os anthropoides – «Consul» em Lisboa e em Paris – Relação entre o domador e o animal – Similhança dos macacos com o homem – O que ha de verdadeiro e inexacto a este respeito – Desenvolvimento divergente de uns e de outros – Idéa actual sobre a descendencia de ambos – Um pouco de historia e factos averiguados ácerca do chimpanzé – Docilidade deste no estado captivo – Importancia destes factos perante a zoologia aplicada." in Diário de Notícias de 5 de Janeiro de 1905, nº. 14045, p. 1-2 (c. 7-c. 1). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=1994.



Detalhes


Nome do Jornal


Mostrar detalhes do Jornal

Número

Ano Mês Dia Semana


Título(s) do Artigo


Título

Género de Artigo
Opinião

Nome do Autor Tipo de Autor


Página(s) Localização do Artigo na(s) página(s)


Tema
Ciências da Natureza
Outros

Educação Cientifica
Outros
Palavras Chave


Notícia