Chronica scientifica
Reflexão sobre assumpto já tratado – A descendencia do homem – A opinião de Vogt e a de Darwin – Analogia entre o homem e os macacos – A significação dos fosseis humanos e semi-humanos – As pedras talhadas – O Dryopithecus – Os suppostos antepassados da nossa especie – O homem das cavernas – As ultimas descobertas da paleontologia – Deducções e conclusões.
Uma pessoa amiga, assaz benevola para nos ler mais de uma vez e de uma nunca desmentida dedicação ao estudo, para se absorver na contemplação de graves problemas scientificos, dignou-se levantar-nos certos reparos ácerca de um ponto discutivel do nosso artigo antecedente ácerca dos macacos mais proximos do homem.
Quizemos, portanto, acreditar que não fomos então sufficientemente explicitos, além de que o assumpto que ja abordámos, difficil por mais de uma razão, é de real e mais intensa curiosidade do que se julgaria á primeira vista.
Não pronuncia este pequeno exordio que voltamos a occupar-nos demoradamente delle ou a explanal-o debaixo de forma mais correntia.
O simples aclaramento de um ponto prestavel á controversia pelo nosso amavel contendor suggerida, traz-nos de novo ao redor da questão da descendencia do homem e do seu parentesco simiano.
A este respeito dissémos que a moderna philosophia zoologica estabelecera, segundo Carl Vogt, que o homem, apesar da frisante similhança com os monos superiores (chimpanzé, gorilla, etc.), não conta com razão estes na linha dos antepassados que o encadeiam á série animal engendrada segundo a doutrina evolucionista e para que a sciencia dia a dia, pacientemente, tem trazido factos de relevo architectural.
Com effeito e em que pese á mente orgulhosa de uma boa parte de philosophos e litteratos catholicos, Darwin, o celeberrimo naturalista inglez que tanta luz derramou sobre a edificação scientifico-natural do ultimo seculo, affirmára em um livro memoravel a muitos respeitos que o homem teria a sua procedencia nos monos do velho mundo, em uma epoca muito remota da evolução dos primatas.
Todas as analogias e graduações encontradas entre os simios e o homem, sobretudo entre os macacos anthropoides e as raças inferiores deste, se aduziram em favor daquella adaptação da theoria darwiniana á nossa especie.
Julgou-se nos caracteres mais salientes de alguns restos humanos fosseis uma segura prova desta intima ligação. Tal é por exemplo o caso do celebre craneo de Néanderthal, que os naturalistas cerem [sic] ter pertencido a um individuo de raça humana primitiva e no qual se notam certos pormenores de forma que o approximam por exemplo do chimpanzé.
O encontro dos restos das creações extinctas nas camadas que delimitam as differentes edades [sic] da Terra contribue para avolumar estas idéas, fornecendo as bases para a formação dos typos ancestraes. De muitas especies se conhece hoje o antepassado ou tronco fossilisado, que as liga a precedentes formações.
Quanto ao homem, não se tem descançado [sic] na pesquiza dos seus representantes fosseis e as descobertas realisadas neste campo, em diversos pontos do globo nos ultimos tempos, teem revelado factos de uma extraordinaria importancia para a genese da mais exacta theoria da descendencia humana.
O estudo minuciosamente feito das pedras talhadas é uma das bases desta derivação, pois se quiz ver nos silex grosseiramente afeiçoados de antigos estratos geologicos a prova da existencia de um ser humano primitivo que, no estado mais rudimentar da industria, teria assim buscado em a natureza os seus primeiros e mais necessarios utensilios.
Chegou-se mesmo a pretender que os silex do terreno miocéne, a terem sido realmente talhados, o teriam sido pelo Dryopithecus, antropoide muito superior que seria a verdadeira stirpe prestes a humanisar-se. Este dryopithecus seria de estatura proxima da do homem, os seus queixaes, menos arredondados que os do Europeu, approximar-se-hiam dos dos [sic] raças australianas, isto é, de um typo menos perfeito de homens. A disposição demasiado fragmentaria destes achados torna debeis e inconsistentes as conjecturas dos sabios a este respeito. O mais esperto dryopithecus não é considerado na presente epoca ser mais capaz de partir calhau de que o são os verdadeiros monos anthropoides e, mesmo os mais estrenuos defensores do darwinismo estão capazes de se deixar crer que a genealogia do homem não póde entroncar em nenhum dos macacos anthropomorphos seus visinhos em varias regiões do globo, no feitio e em muitos phenomenos de ordem psychica.
Se é verdade que na juvenilidade estes monos tendem a equiparar-se com a nossa especie, no seu desenvolvimento ulterior e sobretudo na velhice afastam-se consideravelmente do typo e da mentalidade de qualquer dos nossos verdadeiros similhantes.
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A descendencia de um ser anthropoide de melhor conformação que os simios para a estação vertical, para o uso das mãos que ennobrece o gesto e para a maior amplitude do cerebro que o torna intelligente e perfectivel, busca os seus elementos de prova no conhecimento de interessantissimos fosseis, que esboçam mais nitidamente os primordios da humanidade.
Ha annos foram encontrados em Java pelo medico Dubois os restos de um desses grandes animaes, que á somma de caracteres simiescos sobrepõem os signaes de uma animalidade mais proxima do homo sapiens de Lineo.
Deram-lhe o nome scientifico de Pithecantropus erectus e para logo se declarou a sua eminencia em relação aos restantes simios e a sua probabilidade para constituir o legitimo antepassado do homem, ao menos nessas longinquas paragens.
Mais recentemente deu-se na Europa um acontecimento que fornece a comprovação de que a zoologia, a anthropologia a paleontologia possuem um espantoso poder de reconstituição historica. O caso foi que em Krapina, na Croacia, se descobriu a existencia de ossadas fosseis, pesquizadas com toda a cautela pelo professor Kramberger, da faculdade de Agram, as quaes se reconheceu pertencerem a um individuo a que poderemos chamar homem das cavernas, companheiro dos animaes ferozes que com os despojos daquelle se encontram tambem nas grutas prehistoricas.
A investigação relativa ás porções esqueleticas dos grandes mammiferos que definem a edade dos terrenos revolvidos verifica que se referiam a um dos periodos glaciarios mais recentes.
Foi a primeira vez que restos humanos se acharam em leitos geologicos de tal epoca, um pouco mais anterior á descripta pela apparição do craneo de Neanderthal.
O homem de Krapina, seria, conforme as deducções do professor Kramberger, uma especie intercalar do primitivo de Java (Pithecanthopus [sic] erectus) e do Neanderthalense europeu.
Este trabalho, que honra a anthropologia prehistorica e em particular as faculdades de trabalho e os conhecimentos profundos do sabio paleontologista croata, é cheio de conclusões e esclarecimentos a respeito das origens da especie humana na Europa central e das afinidades entre as raças que habitam esta região. O Pittecanthropus Krapinenis seria portanto o avô do Homo alpinus, com o qual apresenta forte analogia, disctincto da raça do H. europeus, descendente, do que se suppõe, do P. neanderthalense, que deu principio ás populações ao norte da Europa. Teriam assim os povos desta parte do mundo uma dupla proveniencia, que um hybridismo incompletamente aniquilado não deixa fundir num typo unico, dando-nos pelo contrario constantemente a amostra de duas formas ab initio distinctas e inconfundiveis, apesar dos multiplicados cruzamentos que deveriam esbater os seus caracteristico [sic]. Vae nisto, um ataque impensado ao monogenismo ethnico, que os sabios ainda terão de explicar longamente.
J. BETTENCOURT FERREIRA.
J. Bettencourt Ferreira - "Chronica scientifica / Reflexão sobre assumpto já tratado – A descendencia do homem – A opinião de Vogt e a de Darwin – Analogia entre o homem e os macacos – A significação dos fosseis humanos e semi-humanos – As pedras talhadas – O Dryopithecus – Os suppostos antepassados da nossa especie – O homem das cavernas – As ultimas descobertas da paleontologia – Deducções e conclusões."
in Diário de Notícias
de 24 de Janeiro de 1905, nº. 14064, p. 1 (c. 7-8). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=2003.