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Texto da entrada (ID.2056)

Chronica scientifica

Convencionalismo erroneo – Sciencia e literatura – A proposito de Julio Verne – O alcance da sua obra – A popularisação dos conhecimentos scientificos pelo romance – As viagens maravilhosas.

Existe um convencionalismo enraizado como velho habito, que denega parceria entre a sciencia, nas diversas formas porque ella se faz valer, e o que seja propriamente literatura, isto é, a arte de bem escrever, reproduzindo por meio de estylo lantejoulado e de elegancia classica, o fluxo das idéas que brotam da imaginação de poetas e romancistas, ilustrando e divertindo as myriades de leitores de indole varia.

Ha divisões nas bibliothecas, obedecendo a esta convenção de que uma coisa é a sciencia na rigidez pretensa dos seus principios philosophicos e outra é a fluctuação phantastica da linguagem literária, á mercê dos cambiantes de emotividade dos escritores.

Aquelle que a morte acaba de paralysar, o singular autor que era Julio Verne, foi suficiente para extinguir o preconceito, provando na exhuberancia inegualavel da sua grande obra que não ha boa escrita scientifica sem literatura bastante cultivada, e que sem a vestimenta appropriada de uma cuidada phraseologia, a restituição das idéas scientificas torna-se enfadonha e inintelligivel, dá a sensação de desconforto de uma vasta quadra sem mobiliario adequado. No ponto de vista da propaganda de um grande numero de noções de consideravel valor aplicativo, assim como de muitissimos conhecimentos de physica, anatomia, geographia, mechanica, historia natural, a extensa obra de Verne possue um merito inestimavel. Nenhum trabalho, manual ou encyclopedia, tem contribuido mais nem melhor para a difusão de tantos elementos de saber como as novellas instructivas do famoso autor francês. Porque ninguem como elle alcançou o exito incomparavel de penetrar os cerebros juvenis com irradiações suavissimas de uma clara luz intellectual. Escripta, numa linguagem das mais espalhadas e traduzida em muitas linguas europeas, de uma forma eminentemente clara e atractiva, as viagens maravilhosas constituem, pelas suas especiaes qualidades literarias, pelo seu extraordinario poder multiplicativo e ainda pela belleza das edições e barateamento do seu custo em toda a parte, um estimulo a um analeptico que tem tido e continuará a mostrar uma importancia enorme na formação das modernos conhecimentos populares.

Desde o luxo bibliophilico á modestia dos pequenos folhetos de algibeira, para bibliothecas portateis, as obras do primoroso publicista, raro no seu genero, senão exactamente unico, teem a mais larga representação e, o que é mais e melhor, a mais constante aceitação, pois que não ha grande livraria editorial ou recondito alfarrabista que não haja lucrado no commercio das encantadoras narrativas.

O homem tem na sua indole o cosmopolitismo, o instincto migratorio, a necessidade imperiosa de variar, de obter coisas novas, de presencear o nunca visto.

O engenho do imortal novellista das imprevistas travessias, das mais originaes peripecias, das mais pittorescas aventuras e ao mesmo tempo das mais incriveis invenções e dos emocionantes dramas em meios desconhecidos era do [sic] molde a lisongear seguramente a phantasia de todas as edades e de ambos os sexos.

Neste modo de ver, pode-se dizer que a producção feracissima do estimado geographo romancista, abrange uns poucos generos literarios, correspondentes a diferentes feições do caracter e do genio do extraordinario autor. Vae desde o libreto de opereta, cheio de espiritualidade gauleza, em processo ainda inguenuo como factura theatral, até ao drama de intensa comoção como o Miguel Strogoff e a Casa a Vapor; percorre a gama do imaginoso e do poetico desde a Viagem ao Centro da Terra até ao Raio Verde; vôa das admiraveis paginas descritivas das mais formosas paizagens até ao cumulo das invenções miraculosas e scientificamente explicaveis da Terra á Lua.

Tão depressa se detem nos mysterios das ondas nas Vintes mil leguas submarinas, como se compraz nas jocosas narrações do Dr. Ox e da Volta ao mundo em oitenta dias.

Não teve como finalidade esta pujante manifestação de uma das mais lucidas e activas intelligencias desta transição secular que atravessamos a singela amenisação das horas de ocio, por meio de uma leitura facil e interessante. Visou tambem os grandes problemas inventivos, sociaes e educativos.

Essas creações, a principio tomadas como rasgos de originalidade e outras tantas tentações do impossivel, são hoje – e quem sabe? – mercê da mais habil propagação scientifica que se conhece – outras tantas realidades, valiosas acquisições da engenharia moderna.

Assim se póde interpretar a idealisação, já pertencente á pratica, dos barcos submarinos, dos balões dirigiveis, das explorações oceanographicas, dos estudos dos abysmos, das excursões arrojadas para chegar ao contacto intimo das raças ignotas, para reconhecimento das civilisações apagadas.

* * *

Nascido em Nantes em 1828 de origem obscura, Julio Verne fez-se ilustre pela unica força do seu cerebro, pela influencia suficiente da sua vontade e da sua coragem.

Trabalhou sempre as letras com amor e consciencioso methodo, com maior ou menor resultado, mas sempre com merecimento e elevado alcance. Debutou pelo theatro, compondo uma comedia Les Pailles rompues, á qual se seguiram varios libretos de operettas e operas comicas (1853-1860).

Dedicou-se depois ao desenvolvimento da sua aptidão favorita e iniciou o grande romance scientifico e a pequena novella instructiva, mantendo-se excellente numa como noutra.

Nesse tempo existia já a publicação de recreio da casa Hetzel – Magasin d’éducation et de récréation, fundada em 1862. Começou por dar nesta a lume as Cinco semanas em balão (1863) que firmaram a reputação do notavel homem de letras, chegado á maturidade do seu talento.

Estabeleceu-se a serie ininterrupta até aos ultimos annos, intitulada Viagens maravilhosas e cujos principaes volumes são: Viagem ao centro da terra, (1864); Viagem á lua; O capitão Halleras; Os filhos do capitão Grant; Vinte mil leguas submarinas; A descoberta da Terra (1870-1878) e tantas outras por demais sabidas e decoradas com avidez pale [sic] mocidade curiosa e alegre.

Terminou esta brilhante collecção em 1902, com os «Irmãos Rip».

A frouxidão da senelidade [sic] e da doença deixou quebrar essa cadeia que parecia infinita de inventos celebres entretecidos de adoraveis esperanças, saidas do mais bello inverosimil.

Fica ainda assim um monumento glorioso, construido parte por parte pelo homem que melhor revela nos seus escritos, a par da mais vasta e culta intellectualide [sic] a inapreciavel bondade de um coração generoso.

J. BETTENCOURT FERREIRA.

[NOTA - O artigo tem um desenho do retrato do escritor]


Referência bibliográfica

J. Bettencourt Ferreira - "Chronica scientifica / Convencionalismo erroneo – Sciencia e literatura – A proposito de Julio Verne – O alcance da sua obra – A popularisação dos conhecimentos scientificos pelo romance – As viagens maravilhosas." in Diário de Notícias de 28 de Março de 1905, nº. 14126, p. 1 (c. 7-8). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=2056.



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