Assumptos do dia
Um tijollo ou o valor de um tijollo para o hospital de Repouso da Assistencia Nacional aos Tuberculsos [sic]
Para o Hospital de Repouso que esta Assistencia se propõe a construir na Quinta das Mouras no Lumiar, (como em luminoso artigo de propaganda popular expoz aqui mesmo o benemerito Secretario Geral da mesma,) são insufficientes os fundos em deposito, destinados a esta obra de inadiavel urgencia e de utilidade se egual.
É por isso que a minha voz humilde vem hoje dirigir um caloroso apello, não aos ricos, não aos elegantes, não áquelles para quem a caridade é tambem um sport, mas aos que estão mais directamente interessados na construcção e installação d’esse hospital que á sua pobreza desvalida se vae destinar.
Não lhe venho tanto fallar em nome da Caridade, mas do dever que todos temos de nos servirmos e valermos uns aos outros. A caridade é um palliativo sancto, não é uma solução radical para o conflicto aberto hoje entre os pobres e os ricos.
O principio da mutualidade que é applicado na Allemanha taes milagres tem produzido que está transformando a grande nação, e que ha de acabar por transformar o mundo, é aquelle por meio do qual as classes proletarias a si proprias se valem, se resguardam, se protegem, se instruem, e se emancipam finalmente da tutella desdenhosa e humilhantes dos ricos.
É em nome d’esse principio libertador que eu me dirijo aos pobres, aos trabalhadores de todos os officios, aos meus irmãos esmagados hora a hora sob o pezo de uma tarefa monotona, dolorosa, e que seria sem esperança se os signaes percursores de tempos melhores não anunciassem ao pobre que a sua carta de alforria não é uma chimera de sonhadores nebulosos, é uma promessa real que ha de ser cumprida em não remoto periodo.
O Hospital de Repouso é para elles, para os cançados [sic] do quotidiano labutar, para os obreiros das ingratas tarefas extenuantes, para os exhaustos da lucta formidavel com a miseria, para os vencidos no combate desigual da Vida moderna, que parece ter-se tornado mais dura, mais hostil, mais inspiradora de revoltas sombrias, á proporção que vão illuminando os horisontes os clarões de uma alvorada por que os miseraveis esperam ha tanto vão!...
Para os desgraçados que fraquejam no caminho, acossados pela doença, se quer construir agora esse hospital, ao mesmo tempo, complemento e auxiliar dos Dispensarios já estabelecidos. Ali poderão repousar algumas semanas, alguns mezes recuperando as exgotadas forças, revigorando, por ad[e]quada e substancial nutrição, e ar puro e salubre, os depauperados pulmões, aquelles sobre quem paira sinistra a tuberculose, o flagello que por ironia infernal nivella todos os exgotados – os do gozo e os do trabalho.
Valer em quanto é tempo ao predestinado á infecção terrivel, é prestar á sociedade um serviço enorme, é augmentar a riqueza publica restituindo ao trabalho que o produz, milhares de braços que iam pender inertes, e diminuir o desenvolvimento e as probabilidades do contagio, é inocular saude e vida no corpo social que o agente morbido ameaça desfibrar, dissolver.
E quem mais vivamente interessado em que tal obra se realize do que as classes que pelas suas condições economicas tão deploraveis entre nós, estão mais directamente expostas a sofrer as consequencias da cruel doença? Que catastrophe quando o pae de familia, operario laborioso, cahe vencido pelo mal traiçoeiro que o minava! As filhas tem por futuro a desgraça, peor do que a morte; os filhos pequenos ficam soltos na rua, expostos a todos os perigos, a todas as abominações...
É pensando em tudo isto que em nome da Assistencia Nacional aos Tuberculosos, cuja obra de bem é já incalculavel eu venho pedir aos operarios, aos trabalhadores, aos que lidam de sol a sol, curvados á dura lei da necessidade, aos que não ignoram, por experiencia a que sabe o fel da miseria, que pensem um pouco, em quanto teem saude, nos seus camaradas que a perderam.
E que dêem em quanto podem, um pequenino obolo, quasi nada, o que produz uma gotta do seu suor, um quarto de hora do seu trabalho para que este Hospital que é para elles lhes fique definitivamente pertencendo.
O Hospital de Repouso para os doentes pobres, construido á custa dos pobres quem teem saude! Que bello sonho!
Hoje é certo que se nivellaram as classes, que se aboliram os privillegios, que o mais humilde operario do mais humilde officio póde dizer deante do neto orgulhoso da uma aristocracia sem direitos o que Burns disse me verso que a Inglaterra repetiu enthusiasmada de um a outro extremo dos seus dominios opulentos: Um homem vale um homem. Mais nada.
A man is a man for all that.
Mas que importa? Se uma differença mais radical que as outras todas separa os homens em duas familias antagonicas hostis, desconfiadas inimigas? De um lado os que tudo teem e tudo gozam, d’outro os que nada possuem e tudo soffrem!
Uma harmonia mais real unia antigamente as classes em ordenada hierarchia.
Foi perante esta sociedade utilitaria, egoista, fundada na descarada mentira que uma falsa egu[a]ldade estonteia e hallucina e que uma guerra intestina e surda enfraquece e corrompe dia a dia que Carl Marx soltou o seu famoso e retumbante grito: Uni-vos, proletarios de todo o mundo.
Não é com o mesmo intento revolucionario que eu, tão perto do seu grande dia symbolico, faço hoje á população operaria de Lisboa e suburbios um apello identico. Mas e ainda a união que invoco!
Uni-vos para que a vossa collaboração collectiva auxilie e creação rapida desse Hospital que é vosso, e para os vossos.
Vae um tijollo, um tijollo só que seja para o edificio que vos ha de acolher, para a casa hospitaleira que vos recebera e tractará doentes, e que mais tarde, apoz um delicioso periodo de repouso, vos restituira á vossa familia, ao vosso trabalho, com mais energia, com mas sempre boa, mas sempre abençoada, porque é a vida afinal de contas e n’ella cabem muitas alegrias e muitas dôres!
As mais pequeninas quantias, qualquer material, qualquer donativo se acceitam na Quinta das Mouras ao Lumiar, ou no Aterro, na obra do futuro Instituto Central.
Maria Amalia Vaz de Carvalho
Maria Amália Vaz de Carvalho - "Assumptos do dia / Um tijollo ou o valor de um tijollo para o hospital de Repouso da Assistencia Nacional aos Tuberculsos [sic]"
in Diário de Notícias
de 15 de Abril de 1905, nº. 14144, p. 1 (c. 1-2). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=2093.