Chronica scientifica
A anesthesia cirurgica geral – Sua importancia, traços de historia – Vapores anesthesicos: gaz hilariante, ether e chloroformio – Anesthesia local – Inconvenientes e defeitos de um e de outro processo – Insensibilidade hypnotica – Acção anesthesica da luz – Influencia das diferentes radiações luminosas nos organismos – Insensibilisação produzida pela luz azul – Experiencia do dr. Redard – Hypotheses explicativas – Confirmação do resultado – Sua importancia medica – Therapeutica luminosa
Uma das conquistas do alcance mais extenso da sciencia dos ultimos tempos é sem duvida a anasthesia cirurgica, por meio da qual hoje é permittido ao cirurgião executar arriscadas operações, tentar milagres de reconstituição anatomica e physiologica, sem tormento para o paciente, quer sob a acção soporifica do agente anesthesico geral, quer debaixo de influencia limitada do insensibilisador local.
A subtracção temporaria do operado á dor é um problema de alto interesse scientifico e humanitario, cuja resolução prosegue [sic] o caminho da experiencia desde o meado do seculo passado. Desde remotas epocas existem porém tentativas exercidas no mesmo sentido. Em tempo não muito recuado administrava-se o opio e a mand[r]agora, com o fim de adormentar os soffrimentos operatorios.
Na primeira metade do seculo XIX H. Davy descobriu as propriedades anesthesicas do protoxydo d’azote ou gaz hilariante, assim denominado em vista da especie de delirio alegre e transitorio que desenvolve naquelles que o aspiram. Jackson revelou as propriedades analogas do ether, fazendo-se respirar esta substancia aos que se pretendia aliviar por momentos da dôr operatoria.
Em 1847 Flourens transportou para o chloroformio a fama do anesthesico por excellencia, o qual passou a ser empregado correntemente em cirurgia, em concorrencia com o ether, que ainda hoje se usa em França e na Inglaterra e é mesmo preferido na America ao chloroformio. Não ha muito que alguns accidentes produzidos sob o imperio deste levantaram de novo a questão da preferencia a dar ao composto de bastante poder anodyno e menor força toxica, de modo a destituir de perigo este methodo considerado indispensavel cooperador dos arrojos cirurgicos.
Perante os inconvenientes numerosos, nem sempre faceis de remover, da applicação do processo generalisado para obter a insensibilidade e a quietação imprescindivel do doente no acto operatorio outros meios teem sido buscados para chegar ao resultado ideal, sem risco de vida para o doente e de modo a evitar os frequentes incommodos que, quando menos, resultam da anesthesia geral, por exemplo, as syncopes, e os vomitos incoerciveis da chloroformisão. É sabido que nem todos os individuos se prestam egualmente ao emprego das substancias que os privam da consciencia, principalmente por causa da influencia prejudicial que elles teem sobre o coração. D’ahi a diligencia que de alguns annos se vem fazendo de substitutir pela anesthesia local a generalisada, pelo menos nos casos em que se entende circunscrever a insensibilisação á parte directamente affectada. Neste caso ainda os medicamentos usuaes não são isentos de effeitos toxicos e sobretudo de resultados incertos e irregulares; haja vista o que succede com a cocaina, cujo manuseamento é por demais delicado e infiel.
Mais uma vez se tem confiado a manobras de hypnose suggestiva o exito de uma immobilidade transitoria e de uma perda momentanea da sensação; mas á falta de profundidade exigivel da narcose, associa-se a impossibilidade de generalisação do methodo, nem a todos applicavel.
Por isso mais recentemente se tem recorrido á eletricidade para conseguimento da necessaria insensibilidade analgesica localisada.
Foi nesta nova via de investigação que se chegou á evidencia de que a luz possue virtudes muito superiores, tanto no ponto de vista da anesthesia geral, como no da simples indolencia local.
No ultimo congresso da Sociedade Odontologica Suissa, reunido em Lausana, indicou o dr. Redard, da faculdade de medicina de Genebra, um novo processo fundado na efficacia de certa qualidade de luz, para produzir a anesthesia geral.
O effeito das differentes radiações luminosas sobre os organismos é um facto adquirido seguramente ha muito tempo. Resta determinar precisamente o que pertence exclusivamente a uma certa qualidade de luz e não a outra. Não é, portanto, indifferente expor um sujeito a esta ou áquella luz corada. Cada côr elementar, quer dizer, cada grupo de radiações componentes exerce uma determinada acção, e só essa.
Segundo a «Revue des Sciences», o medico genebrez expõe os resultados seguintes:
A luz vermelha é factor de excitação enervante desagradavel; a luz amarella é entristecedora, enquanto a azul é decididamente calmante e dá uma sensação de bem estar. Quantos por esta summaria indicação se consideram capazes de escolher a côr componente a dar aos compartimentos da habitação, conforme a propria disposição psycologica! Quarto illuminados a azul, retiro especialmente destinado ao repouso e á concentração do espirito; sala cor de rosa para o fim de dar ao convivio um tom de animação e quem sabe se incitação a gratas conflagrações amorosas...
Continuando as investigações neste sentido, o citado professor veiu [sic] a perceber que a luz azul não só actua como sedativo, mas tem effeito analgesico acentuado a ponto de consentir operações cirurgicas de curta duração: Por exemplo, as operações dentarias podem facilmente ser executadas sob a influencia deste agente.
Para este fim intervem necessariamente a potencia electrica, que é como o poder occulto de todos os progressos modernos.
Uma lampada de incandescencia de 16 velas, munida de um reflector nickelado e uma côr de violeta constituem o material para a experiencia, que se póde realisar em qualquer gabinete, toda a vez que não haja excesso de claridade de outra proveniencia.
A lampada, cuja ampola é de vidro azul, é collocada á distancia de quinze centimetros dos olhos do operando, que ha de estar com a cabeça coberta por um veu de setineta azul, para afastar os raios diffusos de outras origens.
Importa para este fim a boa disposição do doente, garantindo se o effeito comtanto [sic] que fixe bem com a vista a lampada violeta, porque, segundo a experimentação seguida, os casos em que falhou o processo são devidos a não terem os doentes fixado a luz com os olhos bem abertos.
Attendido este pormenor de primeira importancia, o effeito faz-se notar em dois ou tres minutos, passados os quaes se póde proceder á operação. Terminada esta, o paciente desperta por si mesmo, declarando nada ter sentido.
A explicação do curioso phenomeno está ainda no dominio da hypothese.
Dir-se-ia haver intervenção de uma suggestão hypnotica habilmente dirigida, o que, quanto a nós, não é estranha ao facto, ou pelo menos vem a ser um poderoso auxiliar desta nova maneira therapeutica indolente; porém affirma-se com prova experimental que nas mesmas circumstancias [sic]. Os raios vermelhos ou amarellos dão resultados completamente negativos. O que parece fóra de duvida é que as radiações violeta influem desta fórma sobre o cerebro por intermedio do nervo optico, sem que seja permittido por agora definir a qualidade e o mechanismo da sua acção intima. Outros medicos que teem experimentado o processo do dr. Redard confirmam a excelencia do exito, por fórma que, com pequena modificação das condições, intervenha ou não a hypnose suggestiva, a medicina de hoje e de amanhã acha-se provida de um anesthesico natural de sufficiente virtude para aliviar certas penas, por um meio que nada tem de terrifico e ainda menos de perigoso, qualidades que se não gabam em nenhum dos agentes e methodos mais em voga, muito pelo contrario.
Sendo assim, é mais uma applicação na verdade brilhante, das radiações luminosas, já para tanto prestimosas a arte moderna de curar as doenças.
J. BETTENCOURT FERREIRA.
J. Bettencourt Ferreira - "Chronica scientifica / A anesthesia cirurgica geral – Sua importancia, traços de historia – Vapores anesthesicos: gaz hilariante, ether e chloroformio – Anesthesia local – Inconvenientes e defeitos de um e de outro processo – Insensibilidade hypnotica – Acção anesthesica da luz – Influencia das diferentes radiações luminosas nos organismos – Insensibilisação produzida pela luz azul – Experiencia do dr. Redard – Hypotheses explicativas – Confirmação do resultado – Sua importancia medica – Therapeutica luminosa"
in Diário de Notícias
de 23 de Maio de 1905, nº. 14181, p. 1 (c. 5-6). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=2108.
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