ASSUMPTOS DO DIA
A religião e a sciencia
Em todas as epocas e em todas as raças se teem manifestado luctas entre a religião e a sciencia, ou mais propriamente entre o sacerdocio e as restantes classes, cioso o primeiro das suas immunidades e da sua preponderancia espiritual.
Attribuir á religião a causa efficiente d’esses conflictos é, por ventura, faltar á justiça e á verdade, quando é certo que ella tem sido um dos mais poderosos impulsores da marcha progressiva das sociedades.
Quem dirá que a moral sublime do Evangelho não transformou por completo a philosophia pagã que impulsionava o espirito humano na corrente exclusiva das paixões terrestres?
Ainda hoje o christianismo faz sentir os seus beneficios effeitos e os povos seguem a sua doutrina, marcham á testa da civilisação, demonstrando com exuberancia a sua superioridade intellectual. É incontestavel que a Egreja já se oppoz, por vezes, á affirmação de algumas theorias e factos revelados pela sciencia, considerando-os heterodoxos e contrarios á revelação divina, mas esses diques foram passageiros, mas esses vétos foram improcedentes, e a propria Egreja, sem perder da sua fé, entrou no convencimento de que a terra podia girar em volta do sol sem que a pureza do christianismo perdesse nada com essa rotação natural. É triste, é doloroso, chega mesmo a ser uma vergonha que Galileu tivesse sido condemnado, mas essa condemnação mais se deve attribuir aos homens que interpretam a lei divina, do que á propria lei.
O fanatismo religioso é que tem a culpa d’estes crimes de lesa humanidade e de lesa bom senso, querendo permanecer estacionario e rebelde a todas as innovações, como se a inercia fôsse uma virtude, como se o preconceito e a rotina fossem elementos de felicidade na terra.
O fanatismo não é attribuido exclusivo da religião, e até na propria sciencia tem elle exercido muitas vezes os seus perniciosos effeitos. Como a religião, a sciencia tambem promulga e quer fazer valer os seus dogmas, quando tudo que é obra do homem, tem manifesto caracter de falibilidade. Um dos defeitos da sciencia é querer impôr como definitivo o que não passa de transitorio. Por quanto tempo o «horror vacuo» não passou como explicação axiomatica de certos phenomenos, e como essa explicação nos faz sorrir da ingenuidade dos sabios que nos precederam!
É sempre arriscado querer escudar a nossa opinião com a phrase sacramental, «isto é o que diz, isto é o que manda a sciencia», quando fôra mais acertado e racional dizer simplesmente, com a devida precaução e modestia: «no estado actual a sciencia, o que se sabe de positivo, é isto». Todas as cautellas são poucas e corre-se evidente risco em aventar doutrinas, que ainda não foram validadas por efficaz e diuturna experiencia, D’aqui não se infira que aconselhemos o processo contrario, a timidez excessiva. Dizia um medico notabilissimo, fallecido ha poucos annos, e cujo nome anda na bocca de todos, que não se envergonhava dos seus erros diagnosticos, por que só não se engana quem não queria ou não sabia diagnosticar. Effectivamente assim é. Um erro, não raro, leva ao descobrimento de uma verdade. Podiamos apresentar muitos exemplos comprovativos d’este ennunciado. Recentemente appareceu n’uma revista litteraria, um artigo eruditissimo, em que o seu autor, destruindo um erro inveterado de ha tres seculos, o substitue por uma asseveração, não menos falivel, pois segundo nos afiançam, não tardará a ser destruido pelo singelo, mas irreductivel testemunho de um documento encontrado por um dos nossos mais distinctos investigadores.
A historia contemporanea especialisa-nos um facto, que impressiona extraordinariamente, e que bem demonstra quanto o movimento civilisador se pode operar simultaneamente com o espirito religioso, sem que este ponha embaraços áquelle. Os japonezes não necessitaram de abjurar a sua antiquissima religião para assimilarem todos os progressos das nações mais cultas.
No islamismo fazem-se algumas tentativas, ainda que muito incipientes, no mesmo sentido. Na actualidade, as nações musulmanas, esquecidas do seu antigo poderio moral e material, ou estão subjugadas pelas nações christãs, ou permanecem estacionarias, caminho da sua decadencia e completa ruina. O esplendor que irradiava outr’ora de Damasco de Cordova e de outros grandes centros intellectuaes e artisticos musulmanos, apagou-se talvez para sempre. No entanto, ha quem procure reaccender a chamma sagrada, lançando na fogueira o combustivel! da sciencia, como sendo o mais proprio a reanimar a raça decrepita dos descendentes de Mahomet.
Na Africa existem tres universidades, que ainda conservam o antigo regimen doutrinal, theologico e litterario: – a do Cairo, a de Fez, e a de Tunis. A primeira, graças ao contacto intimo com os europeus, já modernisou bastante o curso dos seus estudos, e a Tunisia diligencia seguir-lhe o exemplo.
O ensino official n’esta região, continua inalteravel, mas uma certa mocidade estudiosa, entende que o elemento particular póde contribuir para o levantamento da sua raça, instruindo-se, educando-se fóra do circulo acanhado da sciencia tradicional, que se baseia quasi exclusivamente, na leitura do Alcorão. Alguns indigenas, que frequentaram os collegios de França, fundaram com este proposito, uma associação propagandista, a que deram o titulo de Khaldounia. Na ultima sessão, celebrada no gremio, e em que se fez a distribuição de premios aos alumnos mais distinctos, em que se pronunciaram discursos não só eloquentes, mas cheios tambem de profunda sensatez. Entre elles, merece destacar-se um mancebo de 25 annos, filho de um primeiro ministro do «bey», que teve palavras de uma grande elevação de ideas, mostrando que não havia incompatibilidade entre a religião e a sciencia, podendo e devendo honrar-se a primeira, e cultivar-se a segunda. As divergencias entre uma e outra são mais apparentes do que reaes; quando estão em desaccordo, não é a sciencia que se engana; é a religião que foi mal interpretada.
A consciencia musulmana talvez se perturbe a principio com este modo de pensar, profundamente revolucionario, impregnado de heresia, mas os hereticos de hoje serão os apostolos de amanhã, e se a luz da civilisação fere os olhos da ignorancia, esta ha de ir pouco a pouco fazendo-se á claridade benefica até que adore finalmente a luz redemptora, sem a qual já não possa mais viver.
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