O Jardim Colonial de Victoria
Meu amigo
Pede-me V. impressões sobre a minha recente visita á colonia allemã dos Camarões, tendo por objectivo principal o Jardim Botanico de Victoria. Uma palavra só diria tudo, e bastaria, se V. com tão pouco se satisfizesse: – «magnificas»; e, bom é dizel-o, mesmo applicando a indispensavel correcção ao qualificativo, visto que se trata de uma colonia recente na Africa Occidental, ainda assim ella não as reduziria a condições inferiores a um «absolutamente bom».
Mas, em summa, eu comprehendo que não é bem o que V. deseja, embora por emquanto [sic] eu pouco mais possa dizer que não seja um desenvolvimento banal da idéa que em resumo aquelles adjectivos envolvem.
Do «Jardim», o meu relatorio, que já foi entregue ao governo de Angola e cuja publicação, espero, será auctorisada na metropole, bem ou mal diz o que elle é e quanto vale.
Do resto, não me é facil falar desde já. A minha situação official obriga-me a encarar as coisas friamente, medindo responsabilidaes, e assim o assumpto, demasiado complexo, tendo de ser muito meditado e estudado de sobra, não pode constituir uma tarefa de «reporter» para quem de mais a mais está completamente fora do «genero».
Preciso é que passem enthusiasmos, aliás bem naturaes num temperamento muito portuguez, sempre prompto a achar bom o alheio e a desdenhar o que de bom há por casa, que, valha a verdade, muito é.
Bem sei que as primeiras impressões são sempre as melhores e aquellas que proventura se devem de preferencia publicar, mas quando isso venha a succeder com os apontamentos da minha interessante viagem aos camarões e ao Congo. Um compromisso anterior me obriga, embora eu deseje ser agradável a V. que me distinguiu com tão honroso convite como se já não fossem bastantes outras provas de consideração dispensadas.
É, sabe V. por isso mesmo que as primeiras impressões são as que mais profundamente calam no animo do observador é que eu acho lastima que nos tenhamos aqui conservado systematicamente afastados do convivio com as colónias estrangeiras, que nos são mais ou menos visinhas, limitando-nos a conhecel-as, quando muito, pelos relatorios officiaes, ou pelo que d’ellas dizem os livros e as revistas. Entre os dois processos de estudo e aprendisagem medeia um abysmo, e se só pelo ultimo podemos avaliar das coisas, coloniaes ou não, paiz algum nos levaria a palma.
Eu penso que os funcionarios de certa categoria nas provincias ultramarinas deviam vêr o que se passa na visinhança com o que muito teria a lucrar a nossa administrção colonial.
O exemplo da Costa Oriental é frisante de mais para que eu insista, argumentando em favor d’esta necessidade.
Sabe V. que em Camarões quasi todos conhecem mais ou menos as nossas colonias segundo os seus interesses, e que por exemplo S. Tomé foi e é uma verdadeira escola para os plantadores de Victoria?
Não encontrei dois d’estes que não conhecessem a nossa ilha, e entre os funccionario muitos conhecem, e bem, a nossa Angola.
Mas… falemos do Jardim Botanico de Victoria, que alguem ha pouco tempo n’uma revista colonial franceza dizia ser o Beritenzorg da Africa occidental. A comparação por emquanto é exagerada, mas eu não duvido absolutamente que em pouco tempo seja justa, dadas as linhas geraes do seu plano de organisação.
Notemos que a instituição é recente e que n’um certo periodo de 15 annos a sua evolução se accentua de uma maneira honrosissima para o povo que, na Europa, depois de 1870 tão brilhantes e proveitosos fructos colheu do ensino tecnico e de educação tão superiormente orientada por homens que não se contentaram com os louros de victoria, cimentando sobre os campos da batalha os alicerces do seu prodigiosos desenvolvimento commercial e industrial.
Ha proximamente 20 annos os allemães encontraram-se senhores de um territorio no fundo do golfo da Guiné, visinho a Fernão do Poo, e que em parte – no relevo pittoresco e imponente de Victoria – se assemelhava por uma pena a S. Thomé, ao Principe e a Fernão. Identidade de terrenos, que afinal fazem parte da mesma serie geologica, identidade de flora e quasi identidade da China. Tudo isto devia trazer-lhes á ideia as plantações de cacau, que em S. Thomé faziam riquezas individuaes, e que, por tanto, interessavam em alto grau, o mundo dos capitalistas europeus.
De facto as colonias, infelizmente, só disputam as attenções de finanças debaixo do ponto de vista de tres producções que tem sido a isca, nem sempre real, para a pesca de muito dinheiro inconscientemente entrado em Africa.
Ha ouro? Ha borrracha? Ha cacau?
Em Victoria não havia ouro; borracha pouca; não havia cacau; mas as «possibilidades» d’esta ultima cultura eram quasi certezas. Esta circumstancia não foi por pouco na creação do primitivo jardim de ensaio de Victoria, cujos primeiros passos foram conduzidos pelo dr. Prenss – um consagrado hoje em dia – que ali alcançou o renome universal de que hoje goza em assumptos agricolo-coloniaes.
Foi feliz a tentativa e ao lado do jardim, quasi á sua sombra, desenvolveram-se as plantações particulares. Mas realisada com exito a sua primeira phase da tarefa, sem duvida a mais facil, dada a riqueza do producto sobre que incidia, o espirito allemão não se satisfez e metteu ombros a uma nova empreza, colhendo d’aquella circumstancia [sic], forças para maior emprehendimento, e aqui começam os allemães de Victoria, depois de terem aprendido comnosco e colherem o nosso exemplo, a dar bellas lições ao mestre que o caso lhes deparara.
Nada ha de mais perigoso em economia agricola do que o abuso da monocultura. Uma circumstancia fortuita dos mercados consumidores ou propagadores, um fungo quasi invisivel, um miseravel insecto, podem de um momento para o outro abalar e comprometter toda a economia de uma região, cujos exploradores impensadamente, por uma excessiva febre de ganho, se limitam a uma producção exclusiva. Este perigo foi previsto pela cautelosa Allemanha colonial.
Era forçoso fazer escola entre o gentio, fazel-o agricultor por forma que certos generos, cujo rendimento cultural não convem ao europeu colonial, que precisa ganhar muito e depressa, podessem abastecer os mercados allemães, que com um «entrain» digno de todo o elogio auxiliam e estimulam a propaganda da administração do Jardim de Victoria.
(…)
E aqui tem V. em poucas palavras, talvez confusamente expostas, a genese e o desenvolvimento da instituição que constituiu, como disse, o principal objectivo da minha viagem aos Camarões. É pouco, mas talvez nas entrelinhas, alguem que saiba ler colha alguma lição, e só por essa circumstancia eu me attrevo a julgar em parte satisfeito o amavel pedido de V.
Em resumo, que resultados se colhe dessa visita?
Um bello exemplo a seguir, se houver em Portugal quem se atreve a enveredar por um novo caminho cuja orientação tenha por base uma solida «educação» profissional e civica. E note V. que quando falo em «educação» procuro não confundir em «ensino». Embora as duas coisas se liguem intimamente, ha, no entanto, differenças que eu não destrinçarei, fazendo essa justiça aos meus leitores, se os tiver a quem apenas me atrevo a sugeril-a.
Aquelle bello estabelecimento de ensino, em todos os seus elementos que de passagem fiz destacar, para as nossas colonias, existe em virtude de circumstancias que infelizmente não concorrem entre nós.
Lisboa, capital de um vasto imperio colonial, não tem um jardim botanico colonial, e quando se commemorou a gloriosa descoberta do caminho maritimo para a India, que a collocava na situação de ser um bello emporio do commercio colonial, então representado pelas drogas e especiarias, como monumento attestatorio dessa commemoração, não pensou sequer numa instituição que, embellezando-a, lhe davam foros de cidade intelligente e bem orientada. D. Manuel assignalou o facto com os Jeronymos. Estava no espirito da epoca. A moderna geração dirigente, recordando o valioso feito, construiu um aquario, que a poucos interessa na metropole e a todos é indifferente nas colonias cujo desenvolvimento n’essa occasião deveria fazer vibrar intimamente a alma nacional.
Lisboa, que foi o porto obrigatorio de todo o commercio colonial, não tem hoje vida commercial que lhe imprima este caracter, não tem industrias que o transformem e entreguem ao consumo, colhendo o melhor fructo das colonias e garantindo-lhe o maximo desenvolvimento. E tudo, mercê de uma protecção contraproducente, tão examine é, que, nova muralha da China, aonde o granito, não menos impenetravel, é substituido por pautas e subsidios, exclusivos, e tributos, que tolhem a expansão de todas as iniciativas coloniaes que embora de largo alcance economico se não traduzam em «mui grosso ganho» immediato, sem canceiras nem ralações por parte de meia dúzia de portuguezes, que pensam symbolisar todo o mundo colonial portuguez, explorando em proveito proprio a bandeira nacional.
O que eu vi, em summa, foi isto, meu caro amigo – uma grande actividade, uma inteira fé na propaganda agricola entre o gentio, uma liberdade ampla de commercio, consequencias logicas da educação d’um povo que sabe o que quer, sabe querer e sabe trabalhar.
Lisboa, 11 de Junho de 1905. – Sou de v., etc., José de Almeida, agronomo.
José de Almeida (autor de carta) - "O Jardim Colonial de Victoria"
in Diário de Notícias
de 21 de Julho de 1905, nº. 14240, p. 3 (c. 1-2). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=2133.