O progresso pela telegraphia
Nas obras da naturesa [sic] como nas do homem a evolução parece ser o caracter dominante. Poderia dizer-se que uma lei analoga em ambos os dirige neste sentido. Desde o oxygenio e o carbone até ao granito e ao basalto, desde o mineral até ao feto, á valisneria e á rosa; desde esta aos primeiros ensaios de movimento no zoofito, na anémona, na madrépora [sic], e destas até ás organisações superiores, até ao cavallo, ao leão, ao simia [sic], ao homem, a escala ascendente, o desenvolvimento evolutivo é perfeitamente accentuado, e portanto a evolução entra incontestavelmente no plano do Creador, ao exame analytico, mesmo assás superficial, da sua obra cosmica.
Ora evolução semelhante se realisa, e se tem sempre realisado, desde o ciclo pre-historico (mais ou menos lentamente) nos lavores humanos. Semelhante, digo, mas não identica. Na natureza nota-se uma intenção constante de ir subindo do mais simples ao mais composto, uma intenção de complicação progressiva na formação dos individuos, das especies e series e em summa dos reinos que constituem a creação integral. Mas cada individuo dessas especies e series é perfeito em si, no entanto que os artefactos humanos são ensaios ou tentames, por vezes bem imperfeitos, evoluindo sem cessar na sua tendencia invencivel para uma perfeição maior, e conseguindo frequentemente attingil-a, como outros tanto [sic] apparelhos que o homem vai sucessivamente inventando na mente, construindo o [sic] destruindo ou abandonando por outros, até se fixar n’um que o satisfaça.
Assim se deu com as diversas formas de vehiculos terrestres e maritimos, a partir do velho carroção pesado, moroso, incommodo, inimigo irreconciliavel do osso sacro e do costado humano, até ao elegante carro americano de Stephenson, do electrico e do automovel, e desde a jangada archaica ou primitiva e do trireme grego e romano até aos veleiros de ha cem annos ainda, e ao moderno vapor, tão rapido, seguro e confortavel, arrebatando-nos atravez do vasto oceano sob o propulsor da sua helice poderosa.
Assim se realisou igualmente com os varios systemas de illuminação. Que enorme viagem e que serie de seculos, a partir da fogueira trogloditica com que se aguentam e allumiavam os primitivos habitantes das cavernas e bypogeus; a partir da humilde e fumosa candeia de folhas de Flandres, suspensa da parede, a partir do fossil candieiro triangular, de latão, provisto de azeite e munido de um arsenal de petrechos adjacentes até á vela se stearina e d’esta á illuminação pelo petroleo, ao gaz hydrogeneo, ao bico Auer, ao gáz acetylene e as ultimas e admiraveis applicações da electricidade, saidas do famoso atelier de Massachusetts.
Parece não ser possivel levar mais longe a levou o insigne Edison a utilisação d’esta assombrosa força da electricidade, na só illuminando os oceanos, as costas, as praças e as ruas, mas – barateando-se por uma especie de prodigalidade condescendente, ao ponto de vir a nossas casas um viaducto de um simples fio metallico, de penetrar na nossa alcova até ao mysterio gymneceu, na nossa sala de jantar, como se fóra um conviva familiar, presidindo ás nossas ágapas domesticas e como que sorrindo-nos na sua espiral incandescente, a fulgir com um pistillo de luz no centro de um calice monopétalo de crystal e banhando n’uma onda amiga de viva claridade as nossas iguarias e os nossos colloquios.
Outrotanto, como exemplo da brilhante evolução, se tem dado com os systemas transmissores do pensamento. Começou-se pelo emissario de carne e osso, authentico e equipado. A Biblia sagrada, o livro hieratico entre todos, o livro historico do povo mais antigo que se conhece, tanto nos seus livros protocanonicos como deuterocanonicos, está cheio de narrações d’estes emissarios, enviados de uma familia a outra, de uma a outra tribu, de um a outro paiz, em nome de certos patriarchas, juizes ou reis, para tratarem de quaesquer negocios de interesse privado ou nacional.
Vieram depois as cartas-papirus, ou pergaminhos já menos vetustos e remettidos sob forma de rolos, muito bem acondicionados; e a estes seguiram-se as cartas de papel de linho muito mais facilmente portateis, quasi dotadas d’azas que levam ao longe, aos confins do globo os clarões da intelligencia ou os gritos do coração. A carta, com que hoje estamos tão familiarisados e a que instinctivamente recorremos como á cousa mais natural deste mundo, é realmente uma creação tão genial como commovente do engenho humano no fomento das suas relações sociaes; é o arremedo da presença physica, e a delicada e ligeira ponte de papel lançada no espaço, sobre a qual o coração, protegido pelo veu discreto e inviolavel do «envelope», vôa ao seio da amisade; e a mente sobrecarregada pela preoccupação financeira encontra nella um instrumento prompto á solução dos seus negocios.
Ainda me recordo muito bem do telegrapho semaphorico, que na minha infancia estava bastante em voga, e que, como instrumento transmissor foi talvez o primeiro succedaneo da carta, não mais isolada e unica na sua missão de mensageira noticiaria. E, na minha ignorancia curiosa dos oito annos, passava horas esquecidas, todo mystificado, a contemplar aquellas pás, aquelles braços de telegrapho e aquellas bandeiras que tinham para mim uma significação tão mysteriosa como se foram signaes cabalisticos.
Este cedeu a vez ao telegrapho dos telegraphos, a nunca assaz preconisada telegraphia electrica, que consegue avassalar o espaço e quasi que o tempo[.] Aqui parece que o engenho e o progresso, por conseguinte, proferiram a sua ultima palavra, designadamente depois da descoberta do telegrapho sem fios de Marconi, se é que a evolução do pensamento deve jamais avistar as columnas d’Hercules e ahi deitar ferro. A telegraphia actual é, de facto, a maior conquista do homem sobre o espaço e a simulação mais completa da instantaneidade do seu pensamento. O mysterioso fluido, captado n’um apparelho, mas nunca comprehendido por nós n’este segmento de intelligencia dispartido pelo Creador á modesta raça adamica, percorre o fio metallico com uma rapidez semelhante á da luz, e n’um vibrar continuo e silencioso. É força, mas força que se corporalisa n’um apparelho e tão singular, que não parece mais estranho ao proprio systema nervoso do organismo humano, de que é um simulacro, e de um alcance tão ingente, tão universal e prodigioso que operou uma nova época de luz nos annaes do progresso humano e que a sua invenção não parece ter mais por auctor um homem mas quasi um semi-deus, um demiurgo.
Se ha uma cousa que dê que pensar, é este como consorcio, atravez da atmosphera, de duas forças de natureza diversa, viajando unidas, espirito e fluido electrico, no esforço confluente de um progresso sempre ascendente e de um domínio mais e mais completo da sociedade sobre a natureza. Viajemos juntos, precioso fluido! És meu servo, mas quasi me sinto tentado a chamar-te meu parente. Foi o Ser eterno que a ambos nos creou. Eu vim mais tarde que tu, e quem sabe se antes de ter chegado a minha intelligencia consciente e activa eu não teria passado pela tua fuidez inconsciente e passiva?
Que és tu electricidade? Como definir-te? És corpo? Não. Molécula? Menos do que isso. Então átomo? Ainda menos. Que és então? Uma força e uma força immensa do mundo physico.
Pareces nada, porque não ha tacto que te apalpe nem visão apurada que te descubra forma, nem microscopio que te revele; e, todavia, és hoje tudo no mundo material, a grande e magica operadora das mais surprehendentes maravilhas; enigma e [ilegível], já movimento, já luz, já arremedo da vida, já voz, já canto e orchestra, já talisman de saude, já revolução scientifica na mysteriosa radiographia.
Que sabe o que esta nos está preparando?
Os que se recusam a admittir a existencia de uma alma espiritual, porque a não veem nem a tocam, teem de tragar, com polpa e caroço, esta formal contradicção, admittindo a força electrica, que tambem não veem nem apalpam.
«Mas vemol-a, dirão, e por assim dizer, apalpamol-a nos seus effeitos».
Pois outro tanto ácerca da alma, a Psyche intangivel e divina. Percebemol-a nos seus effeitos. Pensar, amar, abstrahir, querer livremente, crear a Iliada ou a epopeia camoneana, surprehender pela intelligencia prescrutadora o rythmo dos astros e o rythmo da dupla circulação do sangue nas profundezas do organismo humano... ha aqui muito mais que uma simples questão de movimento de materia.
Como na caverna de Platão, a sombra revela a imagem viva que se agita por detraz do observador.
Padre SENNA FREITAS.
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