Chronica scientifica
Reforma dos lyceus – Opinião do chronista – As deficiencias da hygiene escolar – attitudes defeituosas na escola – Myopia – Associações promotoras de hygiene nas escolas.
Do côro de louvores dirigidos a nova reforma lyceal a nossa opinião constituiria uma nota discordante de podesse elecar-se bem alta, porque, se é certo que aquelle novo figurino programmatico do ensino secundario vem a ser uma modalidade mais aceitavel relativamente ao seu antecessor, não é menos provavel á face da boa sciencia que elle se não parece nada com os moldes que a pedagogia scientifica lhe impõe e que a instrução social, a vida política e industrial modernamente reclamam.
Não pretendemos nesta secção stigmatizar [sic] as deficiencias do novo regimen comquanto [sic] seja evidente a boa vontade do legislador em acertar, não tão sómente evocar as attenções dos interessados sobre determinadas questões que se prendem intimamente com este assunto e merecem estudo assiduo dos competentes.
Por maior que seja o desejo do reformador em estabelecer em ensino util em bases solidas, esse fervor, muito louvavel alias, não basta, desacompanhado dos elementos, que só um estudo demorado e especial pode fornecer, fundamentando na observação e experiencia mais criteriosa as medidas adoptadas.
Foi muito apressadamente inspirada a nova lei para que se possa ver nella uma satisfação aproximada dos numerosos desiderataa que de nossos tempos tem de atender um diploma d’esta ordem. A pressa desculpa-se pela urgência de legislar, á vista do inadmissivel e insuportavel estado de coisas anterior, reprovados por todos quantos possam ter voto ilustrado sobre a materia.
Aguarde-se por isso com aperfeiçoamento exigivel a regulamentação da actual norma de instrucção e d’ahi a lapidagem de muitas imperfeições d’ella.
Estão entretanto por satisfazer certas exigencias aparentemente pequenas, mas que perante a hygiene, a pedagogia, as convenções sociaes e politicas são de uma importancia muito grande.
Pondo de parte momentaneamente estas ultimas, ficam ainda a hygiene escolar e pedagogia ns suas mais largas e justas aspirações, um tanto revolucionarias, mas precisas e salutares, a solicitar outros melhoramentos em beneficio das classes juvenis, das quaes hão de surgir os homens de amanha e dos quaes se deve esperar o novo impulso progressivo da nação.
Parecendo a primeira vista muito simples manter a escola em respeito á deusa Hygea, que na crença pagã presidia aos destinos da saude physica e moral, nada é mais problematico e incerto ainda hoje do que prestar-lhe o devido culto nesse lugar.
Faltam por toda a parte as installações apropriadas, o mobiliario adequado, a boa iluminação e arejamento, necessarios para que as populações escolares não definhem e não se estiolem sob a tiranica disposição dos programmas sobrecarregados em excesso, condemnadas a uma inacção de muitas horas, com frequencia em atitudes viciosas e sustentadas com prejuizos de corpo e de saude.
Tratando de educação physica era este um ponto capital de que o reformador tinha a ocupar-se para impedir que os alumnos das numerosas classes fossem victimas de uma vida demasiado artificial, de posições anormaes, das exigencias antiphysiologicas dos programmas, (imagem de «má posição, escripta inclinada») como a da aprendizagem simultanea de varias linguas ainda em vigor no novo projecto.
Em tempos um pedagogista francez censurou aos medicos a excessiva atribuição de doenças da adolecencia [sic] a falta de hygiene nas escolas, porém dando a esta sómente a parte que lhe compete, o medico observa communmente os malefícios nella gerados sob a forma cephaleas, anemias, estados hystericos e neurathenicos mais ou menos pronunciados e algumas vezes mesmo perturbações mentaes lamcutaveis, que são do foro os alienistas.
Cremos que não existe hoje philosopho ou theologo que sustente com denodoque o desenvolvimento intellectual não esteja intimamente ligado com o corpo. A fatalidade é que, como judiciosamente nota o dr. Ballet, na pratica executa-se como se tivessemos ainda imbuídos das velhas doutrinas e preconceitos religiosos, que consideraram independentes uma coisa da outra.
O facto é porém, segundo a expressão de Montaigne, que temos de educar o homem e não as almas simplesmente a conduzir, quer dizer, seja qual for o systema educativo, temos que nos dirigir a um espirito subordinado a um corpo cujas evoluções aquelle obedece.
No encurtamento das linhas a que temos de cingir a nossa idéa, mal podemos com certeza aflorar superficialmente este contencioso assunto. Por isso esboçamos apenas as questões que mais devem preocupar os educadores e reformistas do ensino, em respeito ao bem estar physico dos alumnos, do qual deve tambem resultar o seu bem estar moral, o vigor da sua intelligencia, o maximo de aproveitamento do ensino com o minimo esforço.
Datam dos ultimos 20 anos os melhoramentos pouco a pouco introduzidos nas escola, mas o que ha realisado é insufficiente em relação ao muito que é necessario transformar nestes estabelecimentos, desde a sua edificação até aos instrumentos de estudo comprehendidos os livros.
Por falta das necessarias acommodações a escoliose ou torsão da espinha dorsal é deformação vulgar assim como a myopia.
Uma curiosa observação põe-nos ao modo como estes defeitos organicos se fabricam no collegio. Duas irmãs trabalham a mesma banca, uma á direita, outra á esquerda; como a mesa era demasiado estreita, as duas creanças eram obrigadas a tomar posições inclinadas, uma sobre a direita, outra sobre a esquerda. Passado algum tempo percebeu-se que ambas tinham a columna vertebral desviada, incurvando-se em cada uma para lados opostos. Prova esta experiencia involuntaria a influencia que tem a mobilia sobre o estado physico e o desenvolvimento dos collegiaes.
Sob este ponto de vista não podemos deixar de citar as observações do dr. Tissié, um dos mais notaveis medicos de Bordeus, ao mesmo tempo um especialsita exímio na pedagogia physiologica.
Para julgar o valor e consequencia dos methodos de escripta, examinou uma creança normal de 12 annos fixando-os nas atitudes impostas segundo o costume na aula. Traçando a tinta da china a linha espinhal e as dos hombros e das espaduas perpendicularmente a estas, como se vê nas figuras juntas, tartou de fixar o conjunto por meio da photographia, indicando os desvios obtidos por comparação com o fio de prumo.
Reconheceu evidentemente por esta forma que a escripta inclinada, com o papel a banda é o principal das conhecidas alterações na symetria corporal dos educandos. Apesar de tão clara evidencia a rotina prepondera nos systemas de caligraphia e os pobres estudantes continuam por mal delles a cursivar a mesma letra torcida e esguia que caracterisa a escripta ingleza, alias inesthetica e menos inteligivel que outra qualquer. Não é só a escoliose que desfigura o corpo do alumno a consequencia das más posições contrahidas nos bancos das aulas. É tambem um forte contingente de myopia que provem de desegual e força acommodação da vista, dependente das mesmas atitudes viciosas pelo habito de escrever sobre o caderno obliquo, muitas vezes com luz escassa e usando de um papel em que as linhas feitas de uma leve tinta azul mal se distinguem, devemos dizer d epassagem que semelhantes processos se acham já de ha tempos condemanados pelos medicos e apenas a preguiça rotineira permite empregal-os.
O progresso assustador da myopia de par com o excesso de desenvolvimento programatico e livristico dos estudos é, um facto que deve tambem preocupar todos que teem de cuidar de individuos sujeitos ás condições desvantajosas da escolaridade.
É justamente ns paizes que se dizem mais adiantados que mais se acentuam as perturbações visuaes. Por exemplo, na Allemanha notou-se que 50 por 100 dos individuos de profissões liberaes eram myopes, pelo contrario nas classes operarios e pescadores a myopia desce alguns centesimos por cento.
Shubert mostrou que nas escolas primarias havia 6 por 100 de myopes, ao passo que na instrução secundaria o numero ascende aos 23 por 100 correspondendo a um trabalho excessivo ou demasiado prolongado.
Não se atribui este resultado á influencia de raça, porque o mesmo acontece nos diferentes paizes europeus, especialmente na Allemanha, na Dinmarca, na Russia, na França, na Austria.
As estatisticas mostram que onde se encontram menor numero de pessoas de vista curta é na Inglaterra e na America, precisamente nos dois paizes em que as coisas de instrução e educação são tratadas com esmero e especial intelligencia, tendo-se como um dos primeiros deveres do estado consideral-as a fundo, debaixo de todos os pontos de vista.
Nem tudo, porém, o estado pode fazer em prol da instrução.
Em nações como a nossa de uma demasiada absorpção do poder central, seria de um excellente serviço a creação de ligas ou associações de fomento e protecção, como existe em França, na Belgica, na Inglaterra, na Holanda e na Allemanha, tendo por fim a promoção dos melhoramentos do ensino, com vista em particular a hygiene dos estabelecimento em que elle prosegue [sic].
J. BETTENCOURT FERREIRA.
J. Bettencourt Ferreira - "Chronica scientifica / Reforma dos lyceus – Opinião do chronista – As deficiencias da hygiene escolar – attitudes defeituosas na escola – Myopia – Associações promotoras de hygiene nas escolas."
in Diário de Notícias
de 10 de Outubro de 1905, nº. 14321, p. 1 (c. 4-5). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=2162.