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Chronica scientifica

O theatro e a sua transformação moderna sob principios scientificos – A engenharia e a mechanica ao serviço da ficção theatral – Explicação de Sardou a respeito da evolução scenica – As exigencias da «mise-en-scène» das peças modernas – A hydraulica e a electricidade nos palcos – Effeitos de luz – As vistas luminosas – Os scenarios incombustiveis [–] O theatro mais aprazivel e menos perigoso.

Nesta epoca de positivismo e desconforto moral, o homem não vive apenas da realidade tal e qual é, não se compraz na contemplação das agruras da vida como se nos deparássemos em toda a nudez a que os expõe a observação perspicaz. Um pouco de ficção, é por assim dizer, uma consolação avidamente procurada como remedio ás magoas que a cada passo nos produz as durezas realistas. O theatro com a sua loquella premeditada e contrascenada, com as suas encantadoras illusões de optica; o theatro com a sua psycologia de imitação, as suas mascaras contraditorias, as emoções provocadas, com as suas convenções menos aceitaveis de facto, mas deveras agradaveis, por isso mesmo que são menos verdadeiras, com o seu ensinamento historico, com o seu dialogo incisivo substituindo a monotonia somnifera de um conferente apresentando um these ousada, attrae-nos irresistivelmente mas attrae-nos mais pelo instincto do que pelo pensamento. É já um habito inveterado; para certas pessoas a contemplação theatral é quasi um dever. Ha ali leis e regulamentos a cumprir, obediencias e revoltas a considerar.

Fructo de muitos trabalhos a apreciar: a edificação, os ornamentos, a boa dicção, uma boa peça, uma mimica, a scenographia, a illuminação esplendida ou discreta, a magia, a musica, o machnismo, o valor economico de todos estes esforços para agradar, o emprego de tanta gente pobre, a gloria e o divertimento de tantas pessoas felizes... Sabemos o que é a arte do theatro; poucos pensam talvez o que seja a «sciencia do theatro».

Visto que a abertura da epoca em Lisboa nos oferece o ensejo, diligenciaremos explicar em poucas palavras desataviadas e sinceras, em que consiste essa especie de sapiencia, de ordinario vedada aos profanos, que não teem entrada no templo de Thalia.

Não entreteremos o leitor condescentedente e benevolo com a descrição dos artificos, alguns bastante engenhosos para a sua atrazada edade, do theatro antigo.

Visamos singelamente, com um ou dois exemplos, edificar a curiosidade a respeito de alguns principios scientificos á phantasmagorica da scena e á segurança dos que povoam as salas de espectaculos.

As representações scenicas são definitivamente o resultado de um requinte de gosto, trabalhando educadamente por uns seculos de litteratura, de arte e de saber.

Não admira pois que no theatro moderno se encontrem unidas fraternalmente as perfeições figurativas da pintura e da esculptura, collabotrando nos seus melhores effeitos com a sciencia dos engenhos, com a mechanica dos constructores.

Não se trata já de alçapões e de mutações de vista, como a apparição de Mephistopholes, ou o ruir do templo no final de «Sansão e Dalila». Trata-se de ilusionismos mais perfeitos, scientificamente dirigidos na presença dos quaes a viagem do cysne do Lohengrin pelo Escalda do panno de fundo da Grande Opera ou do nosso theatro de S. Carlos não passa de um grosseiro «truc» que não ilude nem encanta uma creança, apesar de que perante estes mysterios scenicos o publico é eterna creança.

Numa conversa contada por um escriptor francez num livro de historia do theatro (e hoje ha tantos deste genero) V. Sardou dizia a Thiers que lhe falava de arte darmatica e lhe afirmava já não folgar nesse divertimento, nada conhecendo dele apos Casimiro Delavigne, nem das modificações efectuadas depois: – Temos mudado muito depois de Casimiro Delavigne. E, no decurso da conversação, confessa-lhe que o seu merito reside em ter procurado introduzir a verdade no drama, homens arrombando realmente a porta de um castello, como na peça «O Odio» e acaba por dizer: Eis o que C. Delavigne não reproduzira nesta scena.

Com efeito, ninguem melhor poderia shyntetisar a evolução que a complicação da arte enscenar tem soffrido, quando mais não seja desde Moliere.

A toda essa carpintaria rustica e pesada, a esses cordames embaraçados de navio velho, as engrenagens movidas a braço, a moderna sciencia dos palcos substitui uma quantidade de novos e simplificados mechanismos, que com menos despaza de aparelhos e de empregados braçaes chega dar a mais perfeita ilusão do que os trabalhos meios até aqui postos em uso.

Tambem as exigencias do publico são maiores dantes bastava, no seculo XVI por exemplo, que o actor anunciasse que ia passar ao jardim; hoje quer que elle se mova num verdadeiro jardim. Quando janta deante do espectador, realmente come.

Não nos contentamos com um fogo qualquer de artificio que venha fingir o raio numa tempestade artificial, como no «Rei Lear», quer-se ter a sensação do relampago. Por isso a electricidade foi tambem para o theatro uma excellente conquista industrial. Nas representações da “Germania”, de Franceti assiste-se a umas verdadeiras descargas electricas.

A generalidade desta prodigiosa força nas casas de espectaculos contribue poderosamente para toda a casta de effeitos de luz.

A introdução da hydraulica nestes meios artisticos facilita muito a manobra dos scenarios, economizando os serviços dos empregados faznedo deslizar aquelles com maior rapidez e constituindo mais agradavel engano á vista.

No momento presente, em muitas scenas na Allemanha principalmente, ps theatros são providos dos engenhos mechanicos aperfeiçoados.

Nalguns mesmo recorre-se ao emprego da electricidade, como no «Deutsche Theater» de Munich.

No theatro Wiesbaden o numero de machinistas fica reduzido a 20 para executar o mesmo que os 80 que trabalham na Opera de Paris. Em Wiesbaden deu á força hydraulica serve para tudo, até para mover a tela de ferro do proscenico e para baixar ou elevar o estardo da orchestra, nas operas de Wagner. Ao signal de um chefe todas as machinas obedecem sem perigo de erro ou faltas de comprehensão dos machinistas.

Com os actuaes elementos que o saber e a industria prodigalisam ns tablados a execução de obras d’arte que nelles se exhibem tem tudo a ganhar e o efeito sugestivo sobre os actores e sobre o espectador é muito mais seguro.

As disposições modernas dos bastidores permittem que a vista se estenda sobre scenarios panoramicos o que é uma perspectiva muito mais exacta, e de uma representação muito mais perfeita e agradavel.

É este um dos progressos realisados em Beyrute.

Neste ponto de vista o uso de telas luminosas constitue o mias bello achado scenographico em moda.

É uma invenção devida ao sr. Eugenio Frey e que por meio de um dispositivo facil de obter e de accionar produz a mais esthetica sensação.

As vistas luminosas são o resultado da projecção por transparencia de positivos de cor sobre o alvo collocado em logar de panno de fundo.

Como esta projecção é bastante intensa, permitte que os planos anteriores sejam bem illuminados, contanto que a luz que os alumia não chegue ao panno em que se projectam as imagens com um aparelho especial.

Uma combinação habilmente feita de vidros de varias cores dá os variados cambiantes do poente e do nascer do sol, como se pode ter ideia assistindo ao começo do primeiro acto da «Iris» de Mascagni, no qual se vê romper o dia no Japão, emquanto uma poderosa orchestra, rica de timbres estranhos, nos delicia executando o celebre hymno ao Sol.

Na representação dos «Contos de Hoffmana», no Grande Theatro de Montecarlo em um dos actos de scena mostra por este processo em trecho de Veneza ao pôr do sol, reproduzindo as caprichosas evoluções das nuvens, na hora do crepusculo e durante o nascimento da lua, tudo sito num lapso de tempo não inferior a meia hora.

Para terminar esta rapida revista diremos apenas algumas palavra sobre uma novidade que se visa não somente a perfeição no enscenamento, mas contribui tambem para segurança dos theatros contra os incendios. Queremos referir-nos ao emprego da tela metalica em substituição dos pannos e dos bastidores de maneira que, na verdade, as diversas maneiras de tornar estes objectos incombustiveis não conseguem satisfatoriamente garantir taes acidentes.

Ha pouco um habil decorador parisiense, o sr. Moisson imaginou um systema novo de construir scenarios e os seus pertences, empregando as redes metalicas apertadas, sobre as quaes se pode muito bem pintar o que se quer e que são susceptiveis melhor do que os trapos do costume de contribuir para a magia das mudanças de luz e para a escamoteação de personagens, como tivemos ocasião de ver ha tempo de Paris, na representação de «Esclamonde», na Opera comique, por isso que, pelas diferenças de claridade entre os palno se faz apparecer e desaparecer o que está por traz do tecido de arame.

Em vez de travejamentos perigosos, os bastidores e repregos são sustentados por peças de ferrocaneladas e leves, que são muito mais faceis de transportar do que as peças correspondentes muito conhecidas em todos os trabalhos. É escusado dizer que, no que toca a incombustibilidade, sem cairmos em affirmações absolutistas, cremos não poder haver maior.

Á custa de engenhos desta ordem, de par com as melhorias correlativas nas acommodações da sala, o theatro do futuro, como diria algum vagneriano, apresentará de certo algumas modificações que hão de tornal-o afinal uma diversão commoda, instructiva e o menos perigosa possivel, desideratum por ora está um pouco longe de se conseguir.

F. [sic] BETTENCOURT FERREIRA.


Referência bibliográfica

J. Bettencourt Ferreira - "Chronica scientifica / O theatro e a sua transformação moderna sob principios scientificos – A engenharia e a mechanica ao serviço da ficção theatral – Explicação de Sardou a respeito da evolução scenica – As exigencias da «mise-en-scène» das peças modernas – A hydraulica e a electricidade nos palcos – Effeitos de luz – As vistas luminosas – Os scenarios incombustiveis [–] O theatro mais aprazivel e menos perigoso." in Diário de Notícias de 24 de Outubro de 1905, nº. 14335, p. 1 (c. 3-4). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=2168.



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