A França e a sciencia
As civilizações modernas, ao contrario das antigas, teem o caracter de cosmopolitismo generalisador que as impõe e insinua no viver intimo dos povos. As civilisações antigas, limitadas aos olhos do historiador por grandes linhas classicas, circunscreviam-se a um determinado meio ethnico, dominavam sobre as raças disseminadas em uma região distinta e crystallisavam numa imutável forma, que constituia um molde constante para todos os tempos. Houve a civilisação Hebraica, a Egypcia, a Chineza, a Grega, a Romana, a Arabe, todas ellas estendendo-se uniformemente sobre certas areas geographicas, imperando sobre castas inconfundiveis, destacando-se fortemente no enquadramento histórico.
Eram vencidas, aniquiladas no embate vigente dos grandes exercitos conquistadores; não ficava pedra sobre pedra.
Mais perto do nosso tempo a civilisação enraiza na alma dos povos e não se desmorona como Troia, ou como o templo ao esforço de um Sansão. É mais espiritual, communicativa e iluminante, envolve toda a ordem de melhoramentos e progressos, que ficam, apesar da força destruidora dos homens e do tempo, das guerras e dos vendavaes.
É provavel que da promiscuidade de raças, da variedade de ideas politicas, religiosas e philosophicas de que surgiu a França medievica e feudal, nascesse o cosmopolitismo irresistivel que é apanagio da civilisação franceza, cuja irradiação poderosa se communica e estende, com um singular poder sugestivo ás outras nações. Na Arte, como na Literatura, na Politica, como no alargamento incessante do patrimonio de sabedoria, que desde o seu principio vem acumulando avidamente, a França, cujo espirito scientifico nos compete celebrar neste logar, tem sido desde longiquas eras um imenso foco de intensa luminosidade, o qual, ao invez do avaro monopolio de conhecimentos feito ciosamente pelo mundo antigo, tornando a sciencia um privilegio de casta, derramou e espalha sempre os resultados brilhantes das investigações realisadas nos diversos campos do saber, esparziu sempre a claridade do espirito gaulez, cheio de verve e de atrahente graça, comunica activamente, constantemente a scentelha do génio, levando as outras nacionalidades a idéa nova, a formula inventiva, o conceito philosophico, a descoberta que maravilha, o livro que enthusiasma, ensina e comove.
Não ha parte alguma do orbe onde a França não tenha feito expandir a força e a graça do seu talento; não ha hoje paiz que alguma cousa seja em face da civilisação que não deva ao intellecto francês uma parte da sua inergia progressiva e reformadora, engenhosa e modernisante.
Dizer em qual dos ramos da frondosa arvore da sciencia o pensar da França mais se exalta não é facil tarefa, que em todos floresce exuberante de seiva e cor um genio que outros sabios admiram, que as multidões veneram recordando as paginas ilustres da Historia, respeitando, convictas, a imponente menemonica dos monumentos.
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Nos tempos quasi historicos já a sciencia fruia na Gallia uma justa nomeada. A escola de Marselha (380 annos antes de Christo) era um luminar intellectual equivalente a Athenas ou a Alexandria.
Sob o dominio dos romanos, diversos estabelecimentos de instrucção se franqueavam aos estudiosos. A invasão barbaresca precipitou a decadência dos estudos na obscuridade medievica, da qual saíram apenas por influencia dos alchimistas levados pelas praticas magicas dos arabes.
Um dos factos mais interessantes da historia da cultura da intelligencia em França é a fundação das escolas publicas por Carlos Magno. Anexadas então aos mosteiros e tuteladas pelas dioceses, é claro que viviam sob o mais completo dominio theologico.
A theologia era uma especie de ganga philosophica em que coexistiam incrustados e pouco á vontade, estreitamente ligados, os conhecimentos scientificos.
As revelações mysticas e a pedra philosophal, juntamente com alguns problemas elementares de astronomia e de mathematica, constituiam o cabedal dos estudos nessa epoca e, apezar do esplendor da civilisação arabe, alguns homens fizeram valer o seu entendimento philosofico.
D’essa edade longinqua (seculo IX a X) são nomeados Hinemar, bispo de Reims e Gerbert, depois leito pontifice com o nome de Sylvestre II.
A phantasia absorvente da transmutação dos metaes, a famosa preocupação da arte de extrahir o ouro cubiçado por meio de complicadas manipulações chimicas, foi em grande parte o inicio de novos methodos de investigação. Ás argucias escolasticas, substituiram os monges sabios as noções da experiencia que, mesmo sem o quererem, iam saindo das suas retortas.
Não admira que estas apaixonadas pesquizas bem como as dos simples e filtros tão procurados pelas suas multiplas virtudes e extraordinarios efeitos desem origem á chimica e á pharmacia as quaes tomaram em França um grande incremento, bem como a arte de curar as molestias, trazida da Asia menos pelos judeus, que fundaram no Languedoc varias escolas, entre as quaes a afamada escola de Montpellier (X e XI seculo).
No seculo XII um edito do Concilio de Tento prohibiu aos medicos as operações cirurgicas, entregando-as completamente a cargo dos mestres cirurgiões.
No seculo XIV a cirurgia deixa de ser uma arte empirica, tomando por base a anatomia restaurada por Guy de Chauliac. Ambrosio Pareo aperfeiçoou-a com a sua genelialidade inventiva, substituindo com felicidade a laqueação dos vasos sanguineos a cauterisação ardente.
É dever que a invenção da imprensa no seculo XV daria á renascença scientifica um novo impulso, que havia de fazer progredir muito as sciencias a par das letras.
As sciencias naturaes são comtudo [sic] nessa era cultivadas meramente por amadores ingenuos; quando muito o engenho prescrutador de um Bernardo Palissy sonda os terrenos como um precursor inconsciente dos geologos.
As descobertas dos navegadores d’este seculo aventuroso não haviam de deixar quietos os naturalistas francezes que se lançaram tambem na busca de coisas novas por longes terras. É assim que Pierre Belon conseguiu publicar em 1555 o primeiro tratado de ornithologia. Como ephemeride digna de nota e que mostra o adiantamento do espirito philosophico e letrado dos francezes nessa data, temos a abertura do Jardim Botanico de Montpellier. Alguns annos mais tarde abria o do Museu de Paris. A agronomia adquiria um estimulo poderoso á custa destes elementos e dos esforços de Estienne e Olivier de Serres, o auctor do «Theatro da Agricultura».
É principalmente no seculo XVII que a França avança á testa do movimento scientifico europeu. Nas mais dificeis combinações arithmoalgebricas Fermaf defronta Newton; Descartes cria a «geometria analytica» (1637); Pascal, o grande Pascal, celebrado pela descoberta do principio de equilíbrio dos liquidos (1653), estabelece o calculo das probabilidades.
A astronomia sempre na dianteira das mathematicas, como sua inspiradora semi-divina, tem no sabio Perrault o mais digno cultor, aquelle que sob o mandado de Colbert funda o Observatorio de Paris (1671).
Uma outra grande invenção fecundissima nos resultados deve a um francez a iniciativa descobridora pela mesma epoca. Foi em 1690 que Denis Papin, fabricando o primeiro autoclave, que teve o modesto nome de «Marmita de Papin», inventou da mesma feita a machina de vapor.
Nos seculos XVII e XVIII as sciencias naturaes e medicas adquirem um grau mais intensivo de cultura. O saber popularisando-se enobrece; a sciencia, rescendendo ainda o preconceito aristocratico, cria titulos. A fundação da Academia das Sciencias de Paris em 1665 institue a «elite» do pensamento como uma verdadeira nobreza, ao passo que o «Journal des Savants», datando do anno anterior, contribue para a vulgarisação das descobertas que haviam de revolucionar mais tarde as ideas e produzir tão importantes resultados praticos.
A observação da natureza tem no sr. de Buffon, cuja magnificencia de estylo ficou proverbial, o mais notavel sacerdote; foi pelo encanto dos seus escritos e pela profundeza das suas observações que a Historia natural veiu [sic] a ter a vulgarisação que decidiu dos seus progressos. O nome e a obra de Buffon são dos que atravessam seculos.
A botanica ilustra-se com a trilogia dos Jussieu e methodisa-se graças aos esforços de Tournefort estabelecendo a classificação que os tres primeiros apoiaram no systema natural de Lineu.
Parmentier introduzindo a cultura da batata em França conseguiu fazer pelo facto scientifico uma das pequenas revoluções, que no reinado de Luiz XVI ajudaram ao movimento geral das reivindicações populares.
Na sua grandiosa e utilitarissima simplicitude a idea de Bremontier, fixando as dunas da Gasconha por meio da plantação do pinheiro maritimo, é ainda hoje uma pratica excellente.
A finura das disseções anatomicas brandas bastante longe apresenta pelo lado dos conhecimentos medicos um sensivel adiantamento, dando para a historia os nomes de Duvernoy, Daubenton e Vicq-d’Azyr.
A engenharia, as obras publicas, a agricultura, a medicina tiram novas forças de todo este progresso, o encyclopedismo do seculo XVIII brota d’este admirável conjuncto que recua os limites do pensamento humano.
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As mathematicas chegam a meio do seculo XVIII em França a um grau de transcendencia não ultrapassado, d’Alembert dá no «Tratado de Dynamica» (1743) as leis do movimento, as quaes Lagrange haveria de mais tarde desenvolver e que Laplace utilisou na «Mechanica Celeste».
A geographia e a nautica registam neste declinar de seculo factos para sempre vinculados á historia, como são as viagens de exploração á volta do mundo realisadas por Bonganiville e La Pérouse, emquanto [sic] Jouffroy aplicava o vapor á navegação.
Cremos que não ha hoje cerebro medianamente illustrado que não creia em Pasteur como um Messias redemptor, que proveu a humanidade abalada por tantos seculos de luta, por tanta causa de degeneração, com os filtros preciosos das suas vacinas, os fundamentos inapreciaveis dos modernos methodos de curar e de prevenir as molestias.
Delles descendem em linha recta os trabalhos de Roux e o emprego do soro anti-diphterico, como é directamente de Pasteur que veem as admiraveis curas da raiva (1885).
Graças ao rapido adiantar das sciencias biologicas toma a medicina no seculo anterior a sua maior importancia e ascende á sua maior nobreza fazendo vingar as precauções prophylacticas, propagando a hygiene, insinuando a boa therapeutica no animo das multidões, prevenindo os males, augmentando o numero dos remedios e meios de os combater.
A physiologia então esplende com Flourens e os trabalhos de Claude bernard. A clinica torna-se uma arte fina e proficiente com Trousseau, Charcot, Peter, Potain e os seus discipulos.
É impossivel dizer aqui o que a anatomia se enriqueceu com a obra de Bichat e de Sapey; como Dareste dá principio á sciencia inteiramente especial das monstrusidades (teratologia); a importancia que tem para a medicina d’essse tempo a descoberta de Laennec sobre a auscultação; a relevantissima acção dos discipulos de Pasteur, abrindo um logar de honra á «bacteriologia» e facilitando a cura de muitas doenças e a prophylaxia de tantas outras pelo conhecimento dos microbios.
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É dificil cada vez mais preencher a lista dos nomes francezes celebrisados na literatura scientifica do nosso tempo.
Poderemos apenas citar d’entre muitos sobre que a gloria hoje irradia a sua aureola os de Janssen e Faye na astronomia physica; de Arsonval na electrologia; de Lipmann na optica (photographia das cores); de A. Gaudry na paleontologia; de Marey na chrono-photographia; de Lacaze-Duthier, de Perrier e Blanchard na zoologia; de Laveran na pathologia exotica; de Abbadie na geographia; de Thoulet na nova divisão oceanographica; de Renard e Lavaux na aerostação dirigivel; de Gautier na chimica; de Lesseps e Eiffel na engenharia; de Curie, revelando novos corpos, dotados de propriedades desconhecidas da matéria, as mysteriosas actividade do radio e do polonio; e tantos outros que a memoria do leitor instruido recordará com respeito e que influem não somente na patria de Hugo e de Bonaparte, mas pertencem á humanidade inteira, deificados pela admiração das gentes.
J. Bettencourt Ferreira
J. Bettencourt Ferreira - "A França e a sciencia"
in Diário de Notícias
de 27 de Outubro de 1905, nº. 14338, p. 4 (c. 4-6). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=2169.