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Texto da entrada (ID.2307)

Um artigo do sr. dr. Ricardo Jorge

A encefalite letargica em Portugal

Tendo os jornais noticiado o descobrimento e a aparição dos primeiros casos de encefalite letargica em Espanha, não faltou quem pela mesma ou outra via interrogasse o que em Portugal se saia da existencia de tal flagelo. Ora, como já na «Luta» esclareceu a pena ilustra a do dr. F. Mira, a medicina nacional foi das primeiras a ocupar-se do estranho morbo. Desvendada e baptisada lá fora em França e Inglaterra no decorrer da primavera de 1918, logo em julho, intrigado pelo esquisito e bizarro da moléstia estampámo-la em nota exegetica e critica desenvolvida na «Medicina Contemporanea», no intuito de divulgar o seu conhecimento e espertar a atenção dos nossos medicos e higienistas. Esta exposição sistematica foi mesmo a primeira revista que desta novidade morbida se publicou na imprensa medica de qualquer país.

Só em março de 1919 nos era denunciado o primeiro caso em Lisboa, que pessoalmente fomos examinar, dando conta sumaria desta aparição ao Congresso Sanitario dos Aliados, reunido nesse mês em Paris. A observação, conthida com o mais escrupuloso esmero pelos drs. Assis Brito e Cancela d’Abreu, foi presente á «Sociedade das Sciencias Medicas» em 24-5-19 com a produção da propria doente já convalescente, acompanhando-a os seus autores de valiosas considerações nosograficas; publicou-a logo a «Med. Cont.», ilustrando-a com fotografias. Tratava-se duma mulher de 34 anos que, depois duns dias de mal-estar e alguma febre, cai em torpor e modorra, prostrada, na cama, de costas face imovel, olhos fechados, corpo inerte, não podendo mexer nem o tronco nem os membros. A custo responde ao que se lhe pergunta, muito embora conserve os seus sentidos e o entendimento. Logo após vem a lume a cuidada observação do dr. Leite Lage sobre uma criança de 4 anos, caso tambem benigno. Outro encontrou na mesma ocasião o dr. Oliveira Soares. Ha registados até agora nesta capital 6 casos. Da provincia o primeiro que veiu ao nosso conhecimento foi achado em Ponta Delgada pelo subdelegado de saude, e o segundo no Porto, pelo dr. Alvaro Pimenta. Há pouco denunciou outro em Beja o dr. Lima Faleiro.

Tal é o balanço da letargia epidemica entre nós, na sua pouquidade não comparavel á relativa profusão com que lá por fora aparece espalhada. Durante a nossa ultima estada em Paris raro era o dia em que os jornais não noticiavam casos novos nos departamentos, e na Conferencia Sanitaria o delegado italiano dava conta de 75 casos registados só numa quinzena na cidade de Milão.

Será uma nova praga com que os maus fados destes tempos negregados nos brindam para acumulo de males? Não; em 1917 já na Alemanha se indiciava a especie, e em 1890 grassara sob o titulo de «nona» na Hungria e na Italia. Então como agora parece ter coincidido com a influenza, e daí uma relação de causa a efeito que tem seduzido a opinião dalguns medicos que tendem a considerar a encefalite letárgica como modalidade nervosa da infecção gripal. Agora, em fevereiro perguntava-nos na Conferencia o dr. Pottevin se conheciamos exemplos historicos da aparição simultanea da gripe e da letargia epidemica, ora, salvo o caso de 90, não sabemos que essa junção tenha sido assinalada.

Da sua antiguidade é que apontamos fortes indicios. No nosso Amato Lusitano descobrimos três casos de letargia, observados no meado do seculo 16 em Ancona, de frisante analogia com o actual sono epidemico. Que havia ao tempo epidemias de narcose, denuncia-o o grande medico judeu, referindo-se a pestilencias letargicas que os italianos chamavam «mazucho», e os espanhois e portugueses «mal de modorra» ou «modorrilha». Ora desses andaços deparou-se-nos menção historica clara em Portugal.

Fala o frei Luiz de Sousa duma moléstia de 1521 «que andava na cidade e matava a muitos, era febre ardente com inclinação ao sono e parava em modorra». Dela morreu nada menos que o rei D. Manuel. Garcia de Rezende meteu em verso na «Miscelanea» este «mal da modorra»:

Neste ano se finou

O Gran rei D. Manuel;

Quantos consigo levou

A morte triste, cruel!

Que rei, que gente matou!

Duzentos homens honrados

Em que iam muitos de estados,

Vimos então se finaram

De modorra, e escaparam

Muitos já quase enterrados.

25-8-20

Ricardo Jorge.


Referência bibliográfica

Ricardo Jorge - "Um artigo do sr. dr. Ricardo Jorge" in Diário de Notícias de 29 de Março de 1920, nº. 19513, p. 1 (c. 6). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=2307.



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