Base de Dados CIUHCT

Divulgação Científica em Jornais



Texto da entrada (ID.2308)

Se os intelectuais tambem fizessem greve…

Um quadro curiosissimo. – Sem Pasteur, sem Edison, sem Marc Seguin, o que seria da civilização humana?

«Se a Inteligencia estivesse em greve desde ha cem anos não existiriam… nem mesmo as greves».

Um escritor francês, Margés, publicou num dos ultimos numeros da revista Lectures pour tous, um artigo interessantissimo. Nele se pretende traçar um significativo quadro do que aconteceria se os trabalhadores intelectuais, á semelhança dos operarios industriais, se tivessem declarado ou se declarassem um dia tambem em greve. Não será inoportuno, nem inteiramente descabido – não é assim? – ao menos como blague, divulgar, nos tempos que vão correndo, a curiosa e inofensiva divagação do escritor francês. Através das suas ironias, ela encerra muitas verdades. Eis porque nos permitimos traduzir e divulgar alguns trechos desse artigo.

«As coisas são o que são e temos que nos resignar a sua fatalidade. Nenhum de nós sabe se amanhã, hoje mesmo talvez, poderá dedicar-se ás suas mais urgentes ocupações, se lhe será possível terminar um trabalho na data marcada. Tudo isso depende de quem nos transporta, de quem nos alumia, nos traz as nossas cartas, nos abastece, etc.»

«Um sabio qualquer deseja ir para o seu laboratorio, onde pretende continuar uma experiencia iniciada na vespera: os meios de transporte puzeram-se em greve, a experiencia tem que esperar e é muito possível que falhe desta vez. Um engenheiro devia, amanhã, fornecer o plano de um novo aperfeiçoamento para uma maquina: cortam-lhe a electricidade, está tudo em greve, o plano não poderá ser entregue na hora marcada.

Este industrial espera um relatorio para decidir, antes dos seus concorrentes estrangeiros, a data da inauguração de um novo ramo de negocio. Greve dos correios. O relatorio não chega. O estrangeiro ganha o avanço preciso de alguns dias. Aquele comerciante parte para o outro hemisferio da terra, para disputar um bom marcado aos inimigos da França, que assediam e procuram atrair os paises neutros. Não ha um instante a perder. Zás! greve dos caminhos de ferro; o francês não pode partir.

«E, comtudo [sic], se os quimicos, os engenheiros, os escritores, se todos os trabalhadores da inteligencia se puzessem tambem em greve, o que sucederia?

Em boa verdade, nada sucederia. Ninguem notaria que esses homens haviam cessado de trabalhar. Á excepção dos medicos, dos cirurgiões, dos advogados e dos jornalistas, cujo labor corresponde a uma necessidade imediata, os restantes trabalhadores da Inteligencia podem entregar-se ao repouso. Ninguem dará por isso.

O maior genio da humanidade pode demitir-se das suas funções de pensador: ninguem sabia que ele pensava, ignorar-se-a sempre que deixou de o fazer. Sera um acontecimento muito menos tragico, mesmo para as pessoas que com ele moram, do que a greve das carroças do lixo.

Mas isto o que prova? Quererá acaso dizer que a greve da Inteligencia é indiferente á Humanidade? E que o maior pensador é menos util do que o condutor da carroça do lixo? É um caso a averiguar…

As maravilhas da industria moderna e os trabalhadores intelectuais

Quando Pasteur se dirigia para o seu laboratorio, percorrendo as ruas da montanha Saint-Geneviéve e analizando a sua ultima hipotese, não prestava decerto á saude publica um serviço tão instante como o varredor ou o limpa-esgotos: somente as descobertas que lhe amadureciam no cerebro deveriam salvar dos miasmas mortais milhões de seres humanos. Sempre que Edison, curvado sobre a sua mesa de trabalho, estudava a maneira de subtrair um fio aquecido pela electricidade á acção oxidante do ar, tornava-se muito menos util aos habitantes do seu bairro do que o acendedor dos candieiros publicos, que lhes trazia a luz; somente, alguns anos mais tarde, devia o grande inventor projectar sobre o mundo um numero de luzes maiores do que aquele que todos os sindicatos de acendedores, coligados desde ha cincoenta anos, seriam capazes de apagar.

Recuando um pouco mais na bruma do passado, quando Marc Séguin procurava, desenhando numa folha de papel, o meio de multiplicar a superfície de aquecimento de uma maquina a vapor e descobria a caldeira tubular, os seus «gestos» interessavam muito menos os seus contemporaneos do que os gestos de um carroceiro conduzindo a sua carroça, ou dos cocheiros, que faziam estalar os chicotes da diligencia Laffitte e Caillard. E, no entanto, Marc Séguin criou a locomotiva e os caminhos de ferro. A greve dos cocheiros da companhia Laffitte e Caillard impediria a viagem de algumas centenas de pessoas e de algumas toneladas de marcadorias. A greve intelectual de Marc Séguin ou de Stephenson teria atrazado o transporte de biliões de viajantes e de triliões de mercadorias. O trabalho intelectual, que se não vê, transfigura o mundo. O trabalho maquinal, que se vê, permite-lhe apenas continuar a viver, ou a vegetar.

De tudo isto, o que se conclue? Conclue-se que a necessidade urgente que se tenha de um trabalho, não representa de modo algum a medida da sua importância. É, portanto por um singular abuso de palavras que se reserva o nome de «trabalhador» aos operarios, manipuladores e muitos outros que se aproveitam

das concepções dos sabios, quando, sem a existencia destes, não existiriam nem o trabalho nem o emprego daqueles homens.

Se não tivesse existido em Edison ou um Gramme, não somente os operarios actualmente encarregados de dirigir os mecanismos por eles inventados se veriam na impossibilidade de produzir as forças electricas, mas nem sequer fariam delas uma ideia.»

«Se aqui ha uns 60 anos, reunidos os operarios das fabricas de stearina, alguém lhes tivesse dito: «façam uma lampada electrica; ou se ha quarenta anos se tivesse ordenado aos operarios metalurgicos: «construam uma torre de trezentos metros», ou mais recentemente: «uma ponte com um só arco que atravesse o Sena», tê-la-iam eles feito? Se aos empregados do telegrafo, ha coisa de meio seculo, fosse solicitada a construção de um aparelho capaz de fazer ouvir a vos humana a 1.000 kilometros de distancia, tê-la-iam construido?

Não, não o teriam construido, assim como todos os sindicatos e confederações reunidos de trabalhadores não nos poderão dar hoje o remedio para a tuberculose. Não se deve, portanto, atribuir as maravilhas da industria moderna aos manipuladores da materia, que nada poderiam ter feito sem os intelectuais.»

A greve dos intelectuais faria parar o mundo

«Pelo visto, seria, pois, uma greve desastrosa a da Inteligencia, se bem que, nos primeiros tempos, não provocasse a menor catastrofe. Muito simplesmente, o progresso deter-se-ia e os males actuais continuariam a fazer-nos sofrer. E seria tudo!

Em boa verdade, devemos confessar que se póde viver sem as conquistas futuras da Inteligencia. Mas póde-se viver, tambem, em muitos casos, sem o trabalho do operario, visto que a maior parte das industrias interrompidas pelas greves nasceram ontem, não tendo sido conhecidas pelos nossos pais. Póde-se viver sem caminhos de ferro, visto que a Humanidade os dispensou durante milhares de anos.»

Póde-se viver sem telegramas, porque Napoleão contentava-se com simples estafetas.

«Póde-se viver sem quinino: é certo que, sem esses produtos, muita gente morreria ou ficaria desfigurada pela doença, mas a Humanidade, no seu conjunto, viveria, apesar de tudo.

A realidade é que todos estes progressos, sem os quais se poderia viver, ajudam poderosamente a vida.

Seria, pois, uma desmarcada ingenuidade declarar inutil toda e qualquer nova pesquiza, sob o pretexto de que hoje em dia já está tudo descoberto, podendo o operario de ora avante dispensar o auxilio da sciencia.»

«De resto, não é necessario imaginar o que aconteceria se os intelectuais se recusassem a trabalhar. O que teria que acontecer, já aconteceu. Há raças e paises em que a Inteligencia fez greve, não porque faltasse aos seus habitantes, mas porque estes acharam superfluo servirem-se dela. As raças musulmanas, durante seculos, desprezaram o trabalho do cerebro, do qual, aliás, não deixavam de estar bem providas: veja-se, por exemplo, os turcos e os arabes. Antes deles, os egipcios haviam caido na mesma apatia. A China igualmente.

Sabe-se das consequencias que dai advieram para os turcos e para os arabes: uma inferioridade tal que, mau grado dotes excepcionais e uma excepcional bravura, foram subjugados por outras raças mais trabalhadoras.

Na propria Europa, durante a Idade Média, a Inteligencia fez gréves parciais, isto é, desprezou vários domínios da sua actividade, ao passo que noutros realizava maravilhas. A Humanidade não sofria, porque não imaginava possíveis os progressos de que nós gozamos, mas era cruelmente flagelada por doenças e fadigas que o mundo actual ignora quase completamente.

A paralização de um cerebro pode ser a inutilização dum progresso

As condições são sempre as mesmas: os que hoje existimos, não sofremos por estarmos privados das maravilhas que a sciencia amanhã gerará, por isso que ignoramos até a sua propria possibilidade. Mas estamos sofrendo de muitos males que a mesma sciencia não póde ainda expulsar da nossa existencia. Se a inteligencia se pusesse em gréve, atrasaria a nossa libertação.

A estas horas, está ela talvez descobrindo o meio de curar uma doença antiga, a tuberculose ou o cancro, por exemplo, de evitar as epidemias, ou de nos dar uma nova razão para amar a vida, um novo meio de poupar o esforço.

Se, hoje em dia, é possivel ao operario trabalhar apenas oito horas e, portanto, produzir mais, durante um dia, do que produziria no tempo de Luiz XIV em doze horas, não é certamente por se ter posto em greve. Os operarios da época de Luiz XIV poderiam á vontade ter-se posto em greve, que não teriam economizado uma unica hora de esforço, desde que quisessem transportar um peso de um ponto para outro, naqueles tempos em que tudo se fazia «á força do braço».

«Não ha que recear, felizmente, que os intelectuais, por espirito de represalia, pensem um dia fazer greve. O Espirito insinua-se onde lhe apraz, e não é de peito feito que quem quer deixa de pensar, de trabalhar, de descobrir.

Porém, o progresso, isto é, a facilidade da vida, póde ser fortemente retardada, anestesiada até pelas dificuldades que as greves trazem ás inteligencias. Uma greve que atrasa o trabalho de um só cerebro, póde ser a inutilização de um progresso que viesse facilitar a vida de milhões de operarios.

Se tantos operários industriais podem hoje dar-se o luxo de se porem em greve, é porque os trabalhadores intelectuais a criaram.

Póde provocar alguns sorrisos, nos primeiros momentos, a «greve da Inteligencia»; mas se a Inteligencia estivesse em greve desde ha cem anos, existiriam no nosso mundo moderno bem poucas das coisas de que nos mostramos tão vaidosos.

Nem sequer existiriam greves…»

[NOTA - O artigo tem duas ilustrações]


Referência bibliográfica

[n.d.] - "Se os intelectuais tambem fizessem greve… " in Diário de Notícias de 30 de Março de 1920, nº. 19514, p. 3 (c. 1-3). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=2308.



Detalhes


Nome do Jornal


Mostrar detalhes do Jornal

Número

Ano Mês Dia Semana


Título(s) do Artigo


Título

Género de Artigo
Opinião

Nome do Autor Tipo de Autor


Página(s) Localização do Artigo na(s) página(s)


Tema
Outros

Palavras Chave


Notícia