Higiene urbana
De vez em quando surgem nos jornais da capital, e entre eles me apraz citar o Diario de Noticias, referencias, reclamações, queixas, censuras mesmo, sobre o mau estado higienico da cidade, que de resto corre parelhas com muitos serviços publicos, sobre os quais, e por meio da imprensa, o publico formula justificadas queixas, que certamente se perdem no ambiente indiferente da administração publica, desde a junta de paroquia, que já foi humilde na sua função, até ao senado municipal, autonomicamente engrandecido pelo esforço ingente de um velho, ou antes antigo paladino das liberdades populares e das autonomias municipais. Não preciso citar nomes, por que todos advinham quem é o sujeito desta oração, a que me refiro com louvor.
A higiene é maltratada nas ruas, nos predios construidos, nas escolas, nas repartições publicas, nos hospitais, na assistencia publica, nas habitações, nos comboios de passageiros, nas estações dos caminhos de ferro, em tudo, em suma, em que o publico tem de meter o nariz, ou pôr o pé.
O grande higienista Fanssagrives dividia a higiene em urbana e rural, assim como classificava os cheiros em urbanos, domésticos e industriais.
A sua classificação é intimamente inaplicavel a Lisboa, onde a higiene é tudo que ha de mais inurbano, e quanto aos campos é tudo que ha de menos rural, porque é a profanação da higiene natural dos campos, invadidos pelas doenças citadinas, que nas regiões privilegiadas de suaves climas, de beneficas altitudes, e de ares puros, vão lançar os doentes, portadores de germens infectantes e insalubres, de natureza essencialmente morbigena.
Não estranha o leitor estas afirmações, que aliás não são feitas por um tecnico de autoridade, mas sim por um profissional, que sabe medir as suas responsabilidades, e á sombra delas não denuncia, mas revela a desconsideração a que pelos poderes publicos, de todas as procedencias, está sendo tratada a higiene, quer seja publica, privada, urbana, indusrial, rural, domestica e escolar, ou outras.
Muito se tem afirmado e escrito sobre a necessidade de acudir de pronto remedio á evidente decadencia fisica, á degeneração sensivel das crianças, que ás escolas vão receber a cultura do ensino, a luz do espirito, necessária ao desenvolvimento intelectual, pela instrução. E logo acode á pedagogia oficial a gimnastica, por exemolo, como remedio eficaz para corrigir a miseria organica, que se manifesta pela magreza, pela redução do musculo, pela flacidez dos tecidos, pela exiguidade das alavancas osseas, evidenciada pela insignificante dinamica de tracção e compressão. E então vão as crianças a uma inspecção medica, que se limita a declarar se existe qualquer doença que possa obstar aos exercicios da gimnastica salvadora. Mas bastará isto para ficar aberto o caminho para a regeneração física da mocidade? Não. É preciso é que nos não iludamos uns aos outros, uns imaginando que está descoberta a panacea, outros supondo que o mal vai desaparecer. Pura ilusão.
Passam as crianças diante de nós, em observação, semi-nuas, pelo menos. Depois de as fixarmos, e de calcular a sua idade provável, grande numero de vezes nos tem sucedido, formulando a hipotetica idade pela aparência, reconhece errado o nosso juizo, porque supondo a criança ter dez anos, ela nos diz: tenho doze, treze, catorze ou quinze.
Evidentemente, ha um atraso fisico no desenvolvimento organico da criança. Quais as causas? E não é difícil atinar com elas, quando se sabe ir procurá-las nas suas origens. E assim se vai conhecer da sua convivencia, da sua habitação, do seu vestuario, habitos, costumes e outras circunstancias que mais ou menos explicam o problema da degeneração fisica infantil da geração contemporanea.
Por um simples questionario ás crianças se fica sabendo que os pais são doentes, frequentam os hospitais, são sifilíticos e alcoólicos, geralmente mal alimentados; que elas saem de manhã para as escolas, tomando um bocado de pão com café, unica alimentação até ao jantar; que este á constituido por uma sopa, um prato de legumes ou de arroz e uma fatia de pão, e que a maior parte das noites nem ceia teem; que se deitam e dormem, três e quatro pessoas num apertado cubículo, mal ventilado, ou mesmo sem ventilação alguma, inspirando cada um o ar expirado dos outros, o que é um envenenamento ou intoxicação gradual e sucessivo do organismo; que o vestuário é falto de agasalhos para resistirem á acção dos agentes físicos da ordem dos circunfusa; que todos estes factores, actuando lenta e sucessivamente sobre o organismo, predispõem para perturbações nutritivas, para a etiologia morbigena, que começa por se anunciar na plêiade ganglionar, na diminuição dos diametros toracicos Antero-posteriores transversais, no limitado perimetro da base do cone toracico, na insuficiencia respiratoria, na precocidade de perturbações cardiacas. Este enunciado bastará para, supomos, levar os mais incredulos á convicção de que a gimnastica das escolas municipais, as principalmente frequentadas pelas crianças pobres, é um engano perigoso, quando desacompanhada da acção salutar dos demais factores, que principalmente imprimem ao organismo infantil a energia nutritiva, o equilíbrio funcional dos aparelhos que constituem a economia global de cada individuo.
(Continúa)
Agostinho Lucio
[NOTA - A numeração da edição que aparece no original consultado está errada, por erro, anterior, na contagem: assim, em vez de ser n.º 19613 -- o que aqui se registou --, aparece o n.º 19612]