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Texto da entrada (ID.2348)

Higiene urbana

II

Foi numa escola municipal que examinamos um grupo de crianças do sexo masculino, tiradas ao acaso da população escolar, e das consideradas pobres. E que na realidade o eram, não nos podia ficar a mais leve sombra de duvida. Bastava o seu aspecto doentio, o seu traje mais que humilde, para denunciar na magreza, no olhar triste, apagado, sem brilho, sem essa vivacidade infantil, tão peculiar ás crianças sadias, a pobreza, senão a miseria organica, a que não faltam os estigmas proprios duma geração tarada por atavismo, ou por acção directa, como se evidenciava na macrocefalia duma das crianças examinadas e na desarmonia entre a idade e o aspecto fisico infantil, algumas das quais aparentando ter oito, nove ou dez anos, já tinham atingido os doze, treze e quinze anos.

Vimos algumas dessas crianças descalças, significando a nudez dos pés uma falta de protecção social, humanitaria, pouco harmonica e concordante com a educação pedagogica e com a higiene escolar.

Custa a compreender como numa capital onde floresce uma Sociedade Protectora dos Animais não haja uma, entre tantas que existem, que queira reparar nesta falta de protecção para uma parte do corpo que não tem menos direito a ser higienicamente respeitada, que a cabeça, o tronco, os braços e pernas, e que se proponha reparar esta desigualdade com o mesmo carinho com que a cantina acode com espartana refeição aos estômagos das crianças pobres, que de sua casa saem, para a escola, com uma refeição homeopatica, ainda mais espartana que a aguada sopinha da cantina.

Mão faz sentido o alarde em cuidar do espirito e a indiferença em cuidar do corpo, abandonando-o, em todo, ou em parte, ás injurias do tempo e aos riscos de lesões físicas acidentais, de imprevistos traumaticos. Não devemos esquecer que entre as Obras de Misericordia se preceitua a de vestir os nus, e ninguem dirá que os pés descalços o não sejam, para merecerem a aplicação da defeza outorgada a todos os membros do corpo, com igual direito.

Dá uma impressão muito desagradavel este mau habito de andar descalço, que é muito português e muito fere a atenção dos estrangeiros que nos visitam, porque é uma triste revelação de falta de higiene, de educação e de desprezo, por vezes inexplicável, como é ver uma varina descalça de pá e perna, ao mesmo tempo e, talvez, sem intenção reservada.

Muitos cuidados é mister ter com a populção escolar infantil, mal alimentada, mal vestida e mal habitada, se queremos preparar-lhe um futuro de regeneração física e moral e em que a escola tem um papel primacial. Á insalubre, desconfortavel e misera habitação do aluno temos de opor uma instalação higiénica alegre, bem iluminada, arejada e bem cuidada, que infelizmente não temos, na maioria das escolas, mesmo oficiais. Aos colegios particulares ou aos edifícios onde funcionam nem ha que lhes fazer reparos. E muitos deles não existiriam se a fiscalização ou inspecção escolar fosse uma realidade.

O cadastro das habitações, sob o ponto de vista escolar e ainda habitacional, está, entre nós, muito longe do desideratum que o movimento scientifico moderno procura imprimir ao esforço restaurador da sanidade publica pela higiene.

Em Lisboa não são só os pateos que subsistem com habitações indiscutivelmente insalubres, que prejudicam a saude e a vida dos seus habitantes. Muitas e muitas casas, alinhadas pelas ruas da capital, de construção mais ou menos antiga, são higienicamente inabitaveis.

Continuadamente são os sub-delegados de saude de Lisboa chamados a proferir o seu veredictum sobre a insalubridade e inabitabilidade dum prédio, sobre as quais não póde haver duvida, o que importa a saída dos inquilinos, porque as obras são irrealizaveis sem o abandono do predio.

Pois o problema, que parecia de fácil resolução intra-muros da higiene, leis e regulamentos sanitário, dum momento para o outro atinge as proporções de insoluvel, porque a lei do inquilinato se levanta, como trincheira insuperável, entre médicos e os franco-atiradores da advocacia, que logo se dividem em duas colunas, uma a favor dos inquilinos, a outra a favor dos senhorios. E, agora, é que são elas com vistorias, embargos, recursos e toda a terapeutica juridica que é de uso invocar e empregar em tão melindrosas questões, e em que, de resto, fica demonstrado que a historica lei do salus populi supremo lex est é tudo menos supremo, emquanto o tribunal superior a não sancionar, em vista dos argumentos achados no ventre do processo. A verdade é que o pleito se vai jogando no xadrez dos tribunais, o que não faz melhorar o estado do prédio, a saúde dos inquilinos, nem a economia dos senhorios.

Meses e meses se arrastam os processos nos cartorios dos escrivães e nos consultórios dos advogados; entretanto subsiste um mal que, se, por um lado, se quere remediar, por outro, só se consegue agravar, evidentemente que com o prejuizo de alguem.

Agostinho Lucio.


Referência bibliográfica

Agostinho Lúcio - "Higiene urbana" in Diário de Notícias de 20 de Agosto de 1920, nº. 19656, p. 2 (c. 4). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=2348.



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