A ALIMENTAÇÃO INFANTIL
O abastecimento de leite é deficiente e feito em más condições
Não sei de países na Europa onde o abastecimento de leite á população seja feito em tão pessimas condições como em Lisboa.
«Cremos que o sistema das vacas ambulantes – escreveu o analista Hugo Mastbaum – é uma especialidade quase exclusivamente lisboeta. Nas grandes cidades do resto da Europa tal sistema não é conhecido, nem mesmo no Porto é seguido. Que nós saibamos, só no Cairo existe tambem o abastecimento de leites por meio de vacas ambulantes».
Mas não é só o sistema por meio de vacas ambulantes que é condenado, tambem o é por qualquer das tres outras formas adoptadas em Lisboa: vacarias, leitarias e venda ambulante em bilha.
São de um notavel estudo, feito pelos homens de sciencia e meus colegas srs. Ildefonso Borges e A. Agueda Ferreira, as passagens que transcrevemos:
«Em New-York o uso do leite pasteurizado para crianças começou em 1903 e, reconhecida a sua benefica acção, tem-se visto o seu consumo aumentar constantemente. Antes de se iniciar o consumo deste leite, a mortalidade infantil, num periodo de 5 anos, era em New-York superior a 96,2 %0 e nos meses de Junho, Julho e Agosto subia a 136%0. Depois do uso do leite pasteurizado a taxa da mortalidade desceu a 55%0. Convem, todavia, notar que juntamente como fornecimento deste leite se tomavam outras medidas de higiene geral, tais como melhor fiscalização sanitaria do leite, mais cuidada limpeza das ruas, parques para crianças, sôro antidifterico, etc.»
«Segundo Sobral Cid, prosseguem: - Em Portugal sobre 1.000 crianças que nascem, 137 morrem no primeiro ano da sua existencia; a mortalidade dos sobreviventes é no segundo ano de 78 por mil e cada um dos que ultrapassam este termo tem ainda até aos seus cinco anos 58,8 por mil de probabilidades de morte».
«Segundo Ricardo Jorge e H. Schindler, continuam: Em Lisboa morreram de diarrêa e enterite até aos 2 anos 732 crianças em 1902, em 1903 foi maior o numero 779 e em 1904 baixou a 758, o que dá respectivamente por mil nascimentos as taxas de 75,7, 79,8 e 76,8. E comentam:
«Pelos resultados obtidos no nosso trabalho parece-nos portanto que a má qualidade do leite do abastecimento de Lisboa, sob o ponto de vista bacteriológico, deverá figurar entre as causas da mortalidade infantil desta cidade».
É horrorosa a eloquencia sinistra da passagem transcrita. Perante um caso de tifo, de peste ou outra doença contagiosa, alarmamos-nos todos e rigorosas medidas são tomadas para as debelar. Ainda bem. Mas perante as más condições do leite que lentamente vai dizimando a população de Lisboa, mormente em crianças, ficamos de braços cruzados e deixamos que o comercio de leite se exerça tão criminosamente, sendo tanto mais censuravel esta inercia, quanto não é só a parte sã dos habitantes que faz largo uso do leite; os doentes igualmente o consomem em grande escala.
A impureza do leite para uso alimentício faz-se sentir em Lisboa por duas maneiras. Em uma delas ha a adição da agua, (ainda se fosse de boa água) e subtracção do elemento gordo, fraude que se exerce hoje em maiores proporções por causa do preço elevado do leite e da manteiga.
Vai mal quem julga que comprando o leite á porta, mungido á vista, se livra da maroteira. Evita, é certo, a fraude por adição de água, mas não evita o empobrecimento em gordura, por que cai-se no erro das mungições fraccionadas. Nos trabalhos a que procedeu, observou o sr. Holterman do Rêgo, que as variações em gordura são tais que as primeiras fracções extraídas do úbere chegam a ter menos de 5% de matérias gordas, emquanto que nas ultimas vai essa percentagem até 10%. Mas estas não as vende o leiteiro ao freguês, leva-as para casa.
A segunda maneita por que a impropriedade do leite para uso alimentício se faz sentir é a que resulta da sua insalubridade. No seu citado estudo sobre o leite dizem os srs. Ildefonso Borges e Agueda Ferreira: «Com estes dados pode afirmar-se que o leite de Lisboa é na sua quase totalidade e pelo criterio bacteriologico, um leite impróprio para consumo».
Não admira que assim seja pelas más condições em que é colhido e fornecido ao publico, proveniente de vacas mal alimentadas e mal estabuladas, mungidas com os úberes sujos e sem condições de higiene, por criaturas porcas, de mãos imundas e sem nenhuma noção de limpeza, conduzido em vasilhas não lavadas, e tudo o mais que o leitor póde imaginar para emporcalhar o liquido e tornal-o insalubre e altamente nocivo. Como é que a população de Lisboa lhe resiste?
E o leite é sensivel a toda a sorte de inquinação de germenes patogenicos. Facilmente recebe os germenes das doenças as mais perigosas e graves, como tisica, tetano, difteria, coler e outras, que comunica em seguida aos que o consomem. Compreende-se depois disto quanto é perigoso lidarem com leite pessoas doentes e utilizarem para a sua exploração animais enfermos e atacados de doenças contagiosas.
Falarei em um outro artigo sobre a fiscalização do leite.
Ludovico de Menezes.