CRONICAS MEDICAS
A sanocrisina
Não ha muito tempo ainda que as primeiras noticias sobre a descoberta da insulina trouxeram a muitos doentes desmedidas esperanças, Não houve diabetico guloso que á força de restricções alimentares ia arrastando a vida, que não pensasse num futuro risonho com pançadas de bolos. Foi preciso pôr-lhes em frente a verdade nua: A preparação da insulina constituiu uma descoberta de largo alcance em quimica fisiologica; dotou o arsenal terapeutico com um medicamento poderoso para combater os acidentes graves que põem em risco a vida dum diabetico; mas não trouxe para a medicina uma substancia de possivel uso corrente, mercê da qual o diabetico pudesse alijar os cuidados de alimentação e regime que lhe eram justamente aconselhados.
Dá-se agora, pelo menos em Lisboa, caso semelhante com a sanocrisina. Correu pelos jornais que o sr. Moellgaard de Copenhague, tinha descoberto um medicamento que curava a tuberculose, e logo os doentes e suas familias imaginaram um futuro em que todas aquelas prescrições e regimes de uso nos sanatorios, todas as recomendações para que os doentes tivessem repouso, bom ar e boa alimentação, se tornariam dispensaveis. Como a agua da fonte da Juventude que remoçava de pronto quem a bebia, como o balsamo do gigante Ferragiro que sarava com a rapidês do milagre os golpes de espada, assim seria a nova droga descoberta por um paciente investigador nas terras frias do Norte.
É preciso esclarecer o publico para que não haja exageros de fé, mas tambem para que esta não falte aos que tenham, pelo seu estado, indicação de tratamento com a nova droga. A sanocrisina, dizia-se recentemente numa sociedade scientifica estrangeira, deve ser recebida, sob o ponto de vista clinico, com grande mas simpatica reserva – «une grande mais amicale reserve».
Vejamos então em que consiste o tratamento de Moellgaard.
As suas experiencias mostraram-lhe que o aurotiosulfato de sodio – é a sanocrisina – tem acção especial destrutiva sobre o bacilo da tuberculose. Não é toxica quando ministrada a um animal não tuberculoso; dada, porém a animais que têm esta doença, causa perturbações graves que podem levar á morte. Mas se o animal sobrevive ao choque pode curar-se da sua tuberculose.
É verosimil a explicação seguinte: Desde que a sanocrisina destroi os bacilos, dissolvem-se no sangue as toxinas, que é como quem diz os venenos, que eles tinham em si, e assim aparecem aquelas graves perturbações. Elas são o resultado duma grande quantidade de toxinas lançadas no sangue. Mas se o animal escapou a esse choque, como resultado ficou-lhe a libertação dos bacilos que forem destruidos, e naturalmente melhora.
A confirmarem-se estas hipoteses, vê-se como a sanocrisina é uma espada de dois gumes, e como pode ser remedio de um tuberculoso e a outro apresentar-lhe o fim. Suponha-se, porém, que se descobria um outro medicamento neutralizante das toxinas libertadas pela hecatombe de microbios. A sua associação á sanocrisina daria então as melhores probabilidades de cura.
Para esse efeito, o sr. Moellgaard preparou um sôro antitoxico injectando em vitelas, alternadamente, bacilos tuberculosos e tuberculina, e assim o seu tratamento inclui sanocrisina e sôro. A eficacia do sôro tem, contudo, despertado reparos, pela facilidade com que foi obtido o que tantos investigadores com tanto trabalho e ha tantos anos têm procurado debalde.
As experiencias clinicas estão de acordo com a parte experimental descrita. Na tuberculose pulmonar humana observa-se tambem o choque, por vezes com extrema gravidade, em seguida á administração do medicamento, e observam-se tambem de seguida, em numero apreciavel de casos, surpreendentes melhoras atestadas pela ausencia de bacilos na expectoração e pelo exame radioscopico. Uma estatistica de Würtzen dá 17 doentes que melhoraram para 12 cujo estado se agravou e 22 que não manifestaram mudança com o tratamento recebido.
Eis o que parece poder afirmar-se até agora sobre a sanocrisina, pelo que pode lêr-se em Lisboa. Alguns medicos portugueses visitaram recentemente Copenhague. Eles nos dirão, á volta, as impressões que por lá colheram.
F. MIRA.
(…).
[NOTA - segue-se uma pequena série de respostas a leitores]
F. Mira - "CRONICAS MEDICAS"
in Diário de Notícias
de 1 de Abril de 1925, nº. 21263, p. 3 (c. 1). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=2425.