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«Traité de Psychologie», por Georges Dumas, 2 vols., edit. Félix Alcan, Paris
Para fazer a critica desta obra monumental, precisaria das 2.100 paginas que constituem a obra. Assim procuraremos não ficar no simples extracto sumariado, nem pretender fazer a critica da obra: limitar-nos-emos a dar ao leitor uma impressão do que é este trabalho que o sr. Georges Dumas organizou, para que escreveu alguns artigos, e em que colaboram muitos dos melhores representantes da Sciencia francesa.
Obra definitiva? Evidentemente que não. Em primeiro lugar, pelo estado quasi incipiente em que se encontram muitos dos capitulos organicos da Psicologia; em segundo lugar, porque dado o caracter especifico da Psicologia – esta nunca passará de timidas e indecisas hipoteses.
Antes de mais nada, entendemos que esta obra devia intitular-se «Tratado de Psicologia experimental», pois que ela não é mais do que um conjunto de monografias de psicologia experimental. O seu prefaciador, o falecido professor Ribot, reconhece que a Psicologia é uma parte da Biologia, diferençando-se[sic] das outras partes desta Sciencia, unicamente por ter como objecto o conhecimento dos fenomenos espirituais. Assim este famoso representante da Sciencia francesa não dá á Psicologia um lugar de Sciencia autonoma no quadro geral das Sciencias. Concordamos. A Psicologia, que para o prof. Ribot é uma Sciencia muito incompleta ainda, não se ocupa nem da alma nem da sua essencia. Da sua essencia, compreendo que não se ocupe. Mas se se ocupa dos fenomenos do Espirito, como atrás ficou enunciado, não se ocupa da Alma? Sendo a Alma o conjunto das faculdades intelectuais e morais – os fenomenos do Espirito são fenomenos da Alma. Quanto á sua essencia, o caso é outro. A Psicologia experimental encara apenas as manifestações do Espirito ou da Alma. Observa-as, analisa-as, correlaciona-as, estuda-as nas suas causas, nos seus efeitos, nas suas transformações, nos seus modos – mas não aborda a essencia da alma, como nenhuma sciencia positiva aborda a essencia das coisas. Mas diz o prof. Ribot que a Filosofia ou não diz nada ou é a investigação das causas primarias e dos primeiros principios. Discordo em absoluto. Toda a sciencia tem uma filosofia: a sintese teorica que se edifica sobre o conjunto das suas leis. Se conseguirmos uma sintese geral das filosofias parciais, temos a Filosofia. A Filosofia scientifica, positiva que não cura das causas primarias – objectivo da Metafisica, ou se quiserem da Filosifia metafisica. Que Ribot diga que a Psicologia não pode ser uma parte da filosofia, está bem – mas não pelo motivo que ele alega. A Psicologia não faz parte da Filosofia, porque esta é a sintese das leis scientificas, e a Psicologia desconhece leis scientificas, pois ainda não está averiguado scientificamente o modo de reflexão do fenomeno psiquico no fenomeno fisiologico. Em verdade, nós bem podemos dizer que, scientificamente, só conhecemos da Psicologia as reacções fisiologicas, ignorando, todavia, nestas mesmas, o seu modo de ser. Fóra disto, conjecturas sobre conjecturas por mais brilhantes e atraentes que sejam os aspectos que elas nos oferecem. Tão conjectural é tudo, neste campo, que este «Traité de Psychologie», obra verdadeiramente notavel, pode estar completamente «démodé», dum ano para o outro. Fóra da moda – e no entanto tão perto ou tão longe da verdade, como qualquer outro em uso. A Psicologia é bem o campo da actividade intelectual em que a Moda impera soberana…
Foi moda a psicologia de Bain; foi moda a psicologia de Wundt; foi moda o psiquismo poligonal de Grasset; foi moda o Fechner, e o Weber, e o Ebbinghane; já passou da moda o Freud com a sua psicanalise. E assim iremos.
Dito isto, entremos propriamente no texto do «Traité de Psychologie». Adoptando o criterio da classificação das Sciencias de Comte – simplicidade decrescente e complexidade crescente, a obra do sr. Dumas oferece-nos o mesmo espectaculo: do simples para o complexo, – quer dum modo geral, quer dentro de cada uma das partes fundamentais da obra. Esta abre com uma Introdução sobre a Psicologia e os seus objectivos e metodos, e é composta de sete livros: 1) Noções preliminares ao estudo da Psicologia; 2) Os elementos da vida mental; 3) As associações sensitivo-motoras; 4) As formas gerais da organização; 5) As funções sistematizadas da vida mental; 6) As sinteses mentais; 7) As sciencias anexas,
Fecha-a uma Conclusão escrita pelo sr. G. Dumas. A Introdução é toda do sr. A. Lalande. Os livros compõem-se de varios capitulos da autoria de especialistas.
Na Introdução, o sr. Salande [sic] começa por fixar a noção historica da Psicologia, lembrando que se muitos dos problemas chamados psicologicos foram tratados desde todos os tempos, desde os sofistas e Socrates a Platão e Aristoteles até Descartes, Spinoza e Libuiz [sic], aquilo que propriamente se denomina Psicologia é relativamente recente, podendo ser datada de Christian Wolff, embora o termo Psicologia se encontre já, no seculo XVI, em Godenins, professor em Marburg. Depois o sr. Salande frisa que a historia da Psicologia, no seculo XIX, é dominada por dois pontos de vista que ora se combinam ora se opõem: o da separação da Psicologia da Filosofia e o da atribuição á Psicologia de um dominio, dum método e de principios que a coloquem tão independente da Biologia, como esta anda da Fisica. Ultimamente, porém, observa o autor, duas grandes influencias se encontram: uma, a do bergsonismo que dá a maxima importancia á intuição; e outra a da sociologia (Augusto Comte e Durkeim).
Depois, o autor afirmando a impossibilidade de definir dum modo simples a Psicologia, e contestando a noção corrente de que a Psicologia seja a sciencia dos estados de consciencia, diz-nos quais os objectvos [sic] da Psicologia: a) a reacção dos homens ás impressões que recebem, ou seja a modificação dos reflexos ocasionais pela educação, pela memoria e pelos habitos – de modo a fazer da Psicologia a sciencia da vida neuro-psiquica em geral; b) a consciencia ou simpatia; c) a psicologia reflexiva que consiste em considerar os elementos da experiencia nas suas relações com o sujeito; d) aquilo a que equivocamente se chama psicologia metafisica.
Dedica-se o autor, a seguir, aos métodos, começando pelo método introspectivo, no capitulo do qual, estuda a notação dos factos e a intuição, que é a antiga introspecção modificada por Bergson, com a sua critica das presuposições intelectuais subjacentes á observação psicologica ordinaria; a seguir, vem a introspecção experimental, a que os alemães chamam o método de Wurzbourg e que Alfred Binet chama, reclamando-o para si, método de Paris; depois, o método fisiologico e o paralelistico tão querido de Taine; depois, os métodos comparativos – o patologico, a psicanalise que é uma modalidade daquele, e que tendo sido iniciado por Brener, encontrou em Freud o seu mais decidido propagandista e panegirista, o genetico e o sociologico. O autor não esquece a contribuição da psicologia zoologica cujos métodos Claparède classificou. Finalmente, os métodos laboratoriais, e a influencia da matematica levando os psicologos á criação de formulas representativas de leis. Neste capitulo, o autor estuda os psicofisicos á maneira de Weber e Fechner, chamando a atenção para a distinção logica que ha entre a psicometria (método quantitativo) e a psicolexia (método qualitativo). O autor fecha o seu estudo, consagrando ligeiras, mas lucidas e sensatissimas palavras, á linguagem psicologica, ou melhor á terminologia da Psicologia, ainda hoje tão pobre ou tão enigmatica ou tão imprecisa, apesar das atenções que o VI Congresso Internacional de Psicologia de Genebra (1909) lhe dedicou, e dos trabalhos realizados pelo Vocabulario Tecnico e critico da Filosofia, e o Dicionario de Filosofia e Psicologia de Baldwin.
Segue-se o capitulo do sr. Etienne Rabaud, conhecido já dos leitores, porque dele lhes falámos em tempos, a proposito dum seu estudo publicado na «Revue de Philosophie», – no qual capitulo se trata do lugar do homem na serie animal. Logo de entrada, topamos com esta afirmativa, em Portugal, seguramente escandalosa, mas, lá fóra, banal, por corrente: «as considerações de ordem morfologica não podem quasi nada, particularmente, contra o ponto de vista teologico, hoje renascente; a semelhança não exclui a ideia de criações independentes». Quere isto dizer que o criacionismo biblico não está abalado pelas investigações morfologicas minuciosas, e que o facto de haver semelhanças entre o homem e o macaco não impede que o homem tenha sido criado independentemente do macaco. E as comparações embriologicas? Já as recebe com mais confiança o sr. Rabaud, se bem que logo note que está muito longe de ir atrás de Fritz Müller, para quem as diversas fases do desenvolvimento do homem reproduzem, em resumo, as formas ancestrais adultas. Mas as considerações de ordem fisiologica, se habilitam a hipoteses, nada levam a certezas. Que sabemos nós dos homens pre-historicos, de modo a podermos preencher o hiato que as manifestações psicologicas abrem entre o animal e o homem.
Todo o estudo do sr. Rabaut é interrogativo. E quando sai fóra do dominio das interrogações, para o das afirmações precisas, é para nos ensinar que embora a formula do pitecometro de Huxley – «nós não sabemos nada, á falta de documentos, e vemo-nos reduzidos a chamar Pre-Gibbon ao antepassado comum de que ignoramos tudo». E por isso o sr. Rabaut escreve: «cada um tem a liberdade de estabelecer uma reconstituição hipotetica, com a condição de compreender a inutilidade dessa reconstituição.»
Da mesma forma ignoramos tudo a respeito dos fenomenos que trouxeram o homem até ao seu estado actual – pois que as causas da evolução psicologica do homem não estão nas suas acções mecanicas.
Como se vê, estamos muito longe das maravilhas de Haeckel que envenenaram mais duma geração – e ou nos inclinamos para o criacionismo teologico, unico logico perante a inteligencia, ou, se nos confinamos no campo restrito da experiencia e da observação, só podemos, decentemente, dizer que não se sabe nada. Esta confissão da impotencia a que a sciencia positiva se vê obrigada é talvez o seu melhor titulo de gloria, pois a sciencia não existe para exibir mentiras ou quimeras, mas para formular realidades, ainda que relativas. Mas o «Traité de Psychologie» não acabou ainda. Teremos que voltar a ele.