Base de Dados CIUHCT

Divulgação Científica em Jornais



Texto da entrada (ID.2515)

Ouvindo um sabio

Das matematicas á historia e á literatura – Gloriosa jornada dum alto espirito – Revolvendo a poeira doirada do Passado

O verdadeiro sabio é sempre uma pessoa simples, despretenciosa [sic], acessivel a todos os que o abordam à busca dum informe ou dum esclarecimento. Ha-os que têm justificados movimentos de mau humor; é quando o cabotinismo irritante os perturba na sua tarefa de profunda elaboração intelectual. Fóra disso, são raros mesmo os que, numa primeira impressão, esboçam um fugitivo gesto de enfado.

O sabio autentico que é o sr. dr. Gomes Teixeira – o eminente matematico, o ilustre reitor honorario da Universidade do Porto, uma gloria do seu país – pertence naturalmente ao numero dos homens de sciencia que, despreocupados de atitudes artificiais, isentos de «poses» orgulhosas, acolhem sempre com afabilidade toda a gente que se lhes dirige tantas vezes com o temor de deparar com desdenhosas sobrancerias, que o culto da verdadeira sciencia condena.

Depois de largos anos duma fecunda actividade intelectual no dominio exclusivo das puras matematicas, o sr. dr. Gomes Teixeira saiu ha tempos da clausura onde os profanos em materia de integrais e de curvas notaveis não podiam conviver com o seu formoso espirito e veio até nós, até ao grande publico, fazer conferencias sobre assuntos historicos, na maior parte sobre temas de historia das matematicas.

E, com surpresa, todos viram desfazer-se depressa o receio de que o grande sabio se mantivesse no dominio longinquo das transcendencias matematicas, usando uma linguagem inacessivel e deixando-nos boquiabertos perante a complexidade inatingivel de raciocinios vedados á incultura matematica do vulgo, que é tambem a nossa incultura.

Recordando grandes vultos

Traçando os perfis de eminentes matematicos portugueses, como Daniel Augusto da Silva e José Monteiro da Rocha, fazendo as biografias de 4 mulheres celebres na Sciencia, ocupando-se da astronomia de S. Tomás de Aquino, erguendo um hino empolgante ao poder das Matematicas – das suas Matematicas, da sciencia em que tão majestosas culminancias atingiu – em suma, em todos os assuntos que abordou em conferencias dum exito excepcional, realizadas em Lisboa, no Porto, em Coimbra, em Viseu, em Guimarães e em varias cidades espanholas, o sr. dr. Gomes Teixeira maravilhou os auditorios, não apenas com a profundidade da ideia em que já o sabiamos eximio, mas ainda com o brilho literario, o vigor de imaginação poetica, a amplidão de cultura erudita, que revelou.

Do ambiente especializado dos congressos scientificos e da «Sorbonne» o glorioso sabio – doutor «honoris causa» pelas Universidades de Madrid e de Toulouse, homenageado pelas principais associações scientificas da Europa e da America – veio falar perante auditorios elegantes e – embora cultos – leigos em matematicas superiores. E um tal publico breve se sentiu arrebatado pela palavra, pela vivacidade e pelo saber «desse moço» de setenta e tantos anos, que nos dá a honra de um acolhimento cheio de bondosas deferencias, ao preguntarmos-lhe [sic] com a curiosidade que nos perseguia desde as suas primeiras conferencias publicas, qual o motivo por que deixara o seu isolamento conventual das indagações matematicas e se abalançava com tamanho exito aos assuntos historicos, versados com tão grande relevo literario e tão alta erudição.

Fala o Mestre

- Eu fiz um curso liceal completo (sciencias e letras) em que não faltou o estudo desenvolvido das humanidades. Atraiu-me nessa distante mocidade a literatura latina, sobretudo Vergilio, que estudei com verdadeira paixão. Tambem me atraía a literatura portuguesa, especialmente os nossos classicos. Li os «Lusiadas» umas poucas de vezes. Li Filinto Elisio, Bocage, etc. Li por inteiro o que havia publicado de Herculano, Garrett e Camilo. Tinha um especial interesse pela historia, sobretudo pela historia de Portugal. Devorei a «Historia de Portugal» de Herculano, li João de Barros, Jacinto Freire de Andrade, etc.

- E não se interessava pelas sciencias?

- A que mais chamou a minha atenção foi a Fisica, por explicar fenomenos que via diariamente.

Ás matematicas não tinha nem afecto nem aversão. Estudei-as, e bem, apenas para cumprir o meu dever escolar.

Com o primeiro dinheiro que na minha vida ganhei, já leccionando, comprei – tinha então 16 anos – a Geometria de Euclides, as orações funebres de Bossnet e a Quimica de Regnault.

- Tamanha variedade de assuntos!

- De facto, essa aquisição revela bem a amplitude das minhas simpatias intelectuais nessa época.

Aos 17 anos fui para a Universidade de Coimbra, com o plano de, se pudesse vencer o curso de Matematica, seguir a Engenharia Militar. Um dos meus professores, o dr. Torres Coelho, depois de me chamar duas vezes á lição, foi dizer ao dr. Filipe de Quental, em casa de quem eu estava, que lhe parecia ser eu o melhor aluno do curso. Sabedor disso, senti-me estimulado. Esse facto decidiu das minhas predilecções definitivas. Consagrei-me desde então com absoluto exclusivismo ás matematicas.

Abandonando a literatura

- Deixou a literatura?

- Deixei de lêr obras literarias. As antigas preferencias apenas se manifestavam no meu interesse pela historia das matematicas. Nunca deixei, em qualquer estudo matematico, de traçar a historia da questão nele versada.

- E até recebeu um honroso premio de filosofia e historia das sciencias, do Instituto de França, não é verdade?

- Sim. Recebi o premio de historia e filosofia das sciencias, do Instituto de França, em virtude desses fragmentos historicos.

Em matematica, segui na minha vida uma evolução. Primeiro enveredei pela analise, a parte mais abstracta. Mais tarde, quando o meu espirito começou a cansar-se com grandes esforços, passei á geometria.

Por fim, quando já a geometria me fatigava tambem, voltei ás predilecções da minha juventude, os estudos históricos. Esta ultima transição coincidiu com a guerra e com a diminuição de relações com os meios scientificos estrangeiros. Até então eu escrevia todos os meus trabalhos em francês.

- E mandados publicar pelo governo português, acrescentámos.

- Exacto. Agora, porém, escrevo em português.

- Confesso a V. Ex.ª que admiro imensamente o seu brilho literario.

Como se escreve Historia

- Para escrever sobre historia, é necessario uma certa forma literaria. Invoquei em meu auxilio todas as humanidades que tanto me haviam interessado na mocidade. Infelizmente, a forma não pode ser perfeita, porque a minha bagagem literaria é apenas o que aprendi até aos 17 anos. Estive divorciado da literatura mais de 50 anos.

Acentuámos a frescura com que esses estudos humanistas se conservavam no espirito do eminente sabio. Dissemos tambem que a forma literaria é simultaneamente consequencia da cultura e duma predisposição natural e que tanto aquela como esta existem no sr. dr. Gomes Teixeira.

Por entre os protestos que a sua modestia ilimitada lhe inspiravam conseguimos ainda saber de S. Ex.ª que a Academia das Sciencias de Lisboa vai brevemente publicar em volume alguns dos seus trabalhos historicos e que já estão preparadas pelo nosso glorioso matematico conferencias sobre Pedro Nunes, José Anastacio da Cunha e impressões de viagem nos Alpes.

Admiravel espirito em que os esforços poderosos da abstracção e da analise não esgotaram, antes vivificaram, tão brilhantes faculdades de realização literaria e de reconstituição objectiva dos factos!

TOMAS PESSOA.

[NOTA - Com fotografia de Gomes Teixeira]


Referência bibliográfica

Tomás Pessoa - "Ouvindo um sabio" in Diário de Notícias de 17 de Março de 1925, nº. 21242, p. 5 (c. 5-6). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=2515.



Detalhes


Nome do Jornal


Mostrar detalhes do Jornal

Número

Ano Mês Dia Semana


Título(s) do Artigo


Título

Género de Artigo
Notícia Original

Nome do Autor Tipo de Autor


Página(s) Localização do Artigo na(s) página(s)


Tema
Matemática

Popularização da Ciência
Personalidades
Palavras Chave


Notícia