Ouvindo um sabio
Das matematicas á historia e á literatura – Gloriosa jornada dum alto espirito – Revolvendo a poeira doirada do Passado
O verdadeiro sabio é sempre uma pessoa simples, despretenciosa [sic], acessivel a todos os que o abordam à busca dum informe ou dum esclarecimento. Ha-os que têm justificados movimentos de mau humor; é quando o cabotinismo irritante os perturba na sua tarefa de profunda elaboração intelectual. Fóra disso, são raros mesmo os que, numa primeira impressão, esboçam um fugitivo gesto de enfado.
O sabio autentico que é o sr. dr. Gomes Teixeira – o eminente matematico, o ilustre reitor honorario da Universidade do Porto, uma gloria do seu país – pertence naturalmente ao numero dos homens de sciencia que, despreocupados de atitudes artificiais, isentos de «poses» orgulhosas, acolhem sempre com afabilidade toda a gente que se lhes dirige tantas vezes com o temor de deparar com desdenhosas sobrancerias, que o culto da verdadeira sciencia condena.
Depois de largos anos duma fecunda actividade intelectual no dominio exclusivo das puras matematicas, o sr. dr. Gomes Teixeira saiu ha tempos da clausura onde os profanos em materia de integrais e de curvas notaveis não podiam conviver com o seu formoso espirito e veio até nós, até ao grande publico, fazer conferencias sobre assuntos historicos, na maior parte sobre temas de historia das matematicas.
E, com surpresa, todos viram desfazer-se depressa o receio de que o grande sabio se mantivesse no dominio longinquo das transcendencias matematicas, usando uma linguagem inacessivel e deixando-nos boquiabertos perante a complexidade inatingivel de raciocinios vedados á incultura matematica do vulgo, que é tambem a nossa incultura.
Recordando grandes vultos
Traçando os perfis de eminentes matematicos portugueses, como Daniel Augusto da Silva e José Monteiro da Rocha, fazendo as biografias de 4 mulheres celebres na Sciencia, ocupando-se da astronomia de S. Tomás de Aquino, erguendo um hino empolgante ao poder das Matematicas – das suas Matematicas, da sciencia em que tão majestosas culminancias atingiu – em suma, em todos os assuntos que abordou em conferencias dum exito excepcional, realizadas em Lisboa, no Porto, em Coimbra, em Viseu, em Guimarães e em varias cidades espanholas, o sr. dr. Gomes Teixeira maravilhou os auditorios, não apenas com a profundidade da ideia em que já o sabiamos eximio, mas ainda com o brilho literario, o vigor de imaginação poetica, a amplidão de cultura erudita, que revelou.
Do ambiente especializado dos congressos scientificos e da «Sorbonne» o glorioso sabio – doutor «honoris causa» pelas Universidades de Madrid e de Toulouse, homenageado pelas principais associações scientificas da Europa e da America – veio falar perante auditorios elegantes e – embora cultos – leigos em matematicas superiores. E um tal publico breve se sentiu arrebatado pela palavra, pela vivacidade e pelo saber «desse moço» de setenta e tantos anos, que nos dá a honra de um acolhimento cheio de bondosas deferencias, ao preguntarmos-lhe [sic] com a curiosidade que nos perseguia desde as suas primeiras conferencias publicas, qual o motivo por que deixara o seu isolamento conventual das indagações matematicas e se abalançava com tamanho exito aos assuntos historicos, versados com tão grande relevo literario e tão alta erudição.
Fala o Mestre
- Eu fiz um curso liceal completo (sciencias e letras) em que não faltou o estudo desenvolvido das humanidades. Atraiu-me nessa distante mocidade a literatura latina, sobretudo Vergilio, que estudei com verdadeira paixão. Tambem me atraía a literatura portuguesa, especialmente os nossos classicos. Li os «Lusiadas» umas poucas de vezes. Li Filinto Elisio, Bocage, etc. Li por inteiro o que havia publicado de Herculano, Garrett e Camilo. Tinha um especial interesse pela historia, sobretudo pela historia de Portugal. Devorei a «Historia de Portugal» de Herculano, li João de Barros, Jacinto Freire de Andrade, etc.
- E não se interessava pelas sciencias?
- A que mais chamou a minha atenção foi a Fisica, por explicar fenomenos que via diariamente.
Ás matematicas não tinha nem afecto nem aversão. Estudei-as, e bem, apenas para cumprir o meu dever escolar.
Com o primeiro dinheiro que na minha vida ganhei, já leccionando, comprei – tinha então 16 anos – a Geometria de Euclides, as orações funebres de Bossnet e a Quimica de Regnault.
- Tamanha variedade de assuntos!
- De facto, essa aquisição revela bem a amplitude das minhas simpatias intelectuais nessa época.
Aos 17 anos fui para a Universidade de Coimbra, com o plano de, se pudesse vencer o curso de Matematica, seguir a Engenharia Militar. Um dos meus professores, o dr. Torres Coelho, depois de me chamar duas vezes á lição, foi dizer ao dr. Filipe de Quental, em casa de quem eu estava, que lhe parecia ser eu o melhor aluno do curso. Sabedor disso, senti-me estimulado. Esse facto decidiu das minhas predilecções definitivas. Consagrei-me desde então com absoluto exclusivismo ás matematicas.
Abandonando a literatura
- Deixou a literatura?
- Deixei de lêr obras literarias. As antigas preferencias apenas se manifestavam no meu interesse pela historia das matematicas. Nunca deixei, em qualquer estudo matematico, de traçar a historia da questão nele versada.
- E até recebeu um honroso premio de filosofia e historia das sciencias, do Instituto de França, não é verdade?
- Sim. Recebi o premio de historia e filosofia das sciencias, do Instituto de França, em virtude desses fragmentos historicos.
Em matematica, segui na minha vida uma evolução. Primeiro enveredei pela analise, a parte mais abstracta. Mais tarde, quando o meu espirito começou a cansar-se com grandes esforços, passei á geometria.
Por fim, quando já a geometria me fatigava tambem, voltei ás predilecções da minha juventude, os estudos históricos. Esta ultima transição coincidiu com a guerra e com a diminuição de relações com os meios scientificos estrangeiros. Até então eu escrevia todos os meus trabalhos em francês.
- E mandados publicar pelo governo português, acrescentámos.
- Exacto. Agora, porém, escrevo em português.
- Confesso a V. Ex.ª que admiro imensamente o seu brilho literario.
Como se escreve Historia
- Para escrever sobre historia, é necessario uma certa forma literaria. Invoquei em meu auxilio todas as humanidades que tanto me haviam interessado na mocidade. Infelizmente, a forma não pode ser perfeita, porque a minha bagagem literaria é apenas o que aprendi até aos 17 anos. Estive divorciado da literatura mais de 50 anos.
Acentuámos a frescura com que esses estudos humanistas se conservavam no espirito do eminente sabio. Dissemos tambem que a forma literaria é simultaneamente consequencia da cultura e duma predisposição natural e que tanto aquela como esta existem no sr. dr. Gomes Teixeira.
Por entre os protestos que a sua modestia ilimitada lhe inspiravam conseguimos ainda saber de S. Ex.ª que a Academia das Sciencias de Lisboa vai brevemente publicar em volume alguns dos seus trabalhos historicos e que já estão preparadas pelo nosso glorioso matematico conferencias sobre Pedro Nunes, José Anastacio da Cunha e impressões de viagem nos Alpes.
Admiravel espirito em que os esforços poderosos da abstracção e da analise não esgotaram, antes vivificaram, tão brilhantes faculdades de realização literaria e de reconstituição objectiva dos factos!
TOMAS PESSOA.
[NOTA - Com fotografia de Gomes Teixeira]
Matemática