A raiva no cão
As estatisticas da raiva em Portugal acusam uma extensão e intensidade tais que envergonham o nosso país perante a civilização. Essa vergonha nacional deriva mais da nossa incuria que da nossa ignorancia. É, pois, um dever o de evitar a expansão da raiva canina; extinta ela, ficariam livres do tremendo mal os animais das outras especies e nós mesmos.
Do espirito do nosso povo é preciso desarreigar a crença da espontaneidade da raiva; não é verdade que a sêde, a fome, os maus tratos, a fadiga, a privação genesica e a ingestão de quaisquer substancias nocivas possam produzir a raiva no cão ou noutro animal, seja de que especie for; a raiva é sempre transmitida dum animal rabico a outro cão. A transmissão faz-se, geralmente, pela mordedura ou lambedela dum animal danado. A saliva é o veiculo ordinario dessa transmissão. O dente, a lingua e a unha do animal raivoso não podem comunicar a raiva senão pela inoculação da saliva virulenta. O simples contacto com um animal rabico torna-se, por isso, tambem perigoso, porque pode ocasionar a penetração da saliva do animal em qualquer ferida ou erosão da nossa pele ou da de um animal que venha a tocar naquele. As glandulas salivares, o pancrêas e todos os orgãos do sistema nervoso do animal danado são igualmente virulentos, e bem assim as glandulas mamarias e lacrimais, pelo que o leite e as lagrimas podem tambem conter o virus rabico. Igualmente, pode esse virus existir na carne do animal raivoso.
Entre a mordedura do animal danado e o aparecimento dos primeiros sintomas da raiva, na pessoa ou animal mordido, decorre um periodo de incubação muito variavel, que vai duma semana a mais de um ano – treze meses, ainda que na maioria dos casos se cifre em sessenta dias. Mas – coisa notavel e da maior importancia – a mordedura do cão pode transmitir a raiva muitos dias antes do animal mordedor apresentar qualquer sintoma da doença, porque a saliva pode já ser virulenta sem que haja qualquer outro fenomeno apreciavel da raiva. Este moderno conhecimento scientifico obriga á maior cautela com as mordeduras do cão e do gato, pois que observações feitas por sabios da mais alta competencia levam a concluir que a saliva de um cão pode ter e inocular o microbio da raiva cinquenta dias antes do animal manifestar o primeiro sintoma do mal!
Até ha pouco, quando um cão mordia alguem, mas não mostrava no acto da mordedura nenhum sinal de raiva, era uso, á cautela, submeter o cão a uma vigilancia de sete até quatroze dias, tempo reputado suficiente para averiguar se o animal estava afectado de raiva, a fim de que a pessoa mordida fosse ou não submetida ao conhecido tratamento anti-rabico de Pasteur. Agora, porém, em face do ultimo ensinamento da sciencia medica, relativa á virulencia da saliva, cinquenta dias antes dos primeiros sinais aparentes da raiva no cão mordedor, essa antiga pratica não basta evidentemente, porque não dá a devida segurança á pessoa mordida, que, por outro lado tambem, não pode aguardar cinquenta dias para ser tratada, sabendo-se que entre a mordedura e o tratamento anti-rabico convém que não medeiem mais de oito dias, sob pena de diminuirem as probabilidades de salvação da pessoa mordida.
Que se ha-de, então, fazer? Como medida segura, só a que manda sujeitar ao tratamento anti-rabico toda a pessoa mordida por um cão, qualquer que seja o estado em que na ocasião ele se apresente. Mas, em Portugal, onde os cães, na sua quasi totalidade, andam á solta e sem açamo, mordendo á vontade pessoas e animais, tal medida exigia um serviço anti-rabico colossal! Para obviar a essa dificuldade, vamos cair noutra não menor, a de obrigar todos os donos de cães a trazê-los açamados na via publica, e a de exigir das autoridades administrativas o cumprimento do preceito que manda exterminar os cães vagabundos sem açamo nem coleira. Será isto possivel em Portugal? Ou teremos de renunciar á policia sanitaria da raiva, para que este flagelo continue livremente a dizimar animais e pessoas, no mais horroroso dos sofrimentos?
É preciso descrever aqui o quadro pavoroso dos sintomas da raiva, para que o grande publico, impressionando-se, reconheça a necessidade de opôr um dique á epizootia rabica de que enferma o país. Isso faremos, num proximo artigo.
J. V. Paula Nogueira
J. V. Paula Nogueira - "A raiva no cão"
in Diário de Notícias
de 10 de Janeiro de 1925, nº. 21184, p. 5 (c. 8). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=2567.