CRONICAS MEDICAS
Pensos especificos
Foi posto em voga recentemente um processo de tratamento de certas doenças por aplicações locais especificas. Furunculos, osteomielites, feridas infectadas, outras doenças contra as quais se procurava ou se pensava num processo de imunização geral, isto é, de todo o organismo, são hoje frequentemnte tratadas por processos de imunização local. Fazem-se culturas dos microbios causadores dessas doenças, obtem-se o que se chama uma auto-vacina, e é essa que se emprega no tratamento.
Ninguem pensava em tal, não ha muitos anos. Sabiamos que, em geral, se não tinha variola ou febre tifoide, por exemplo, duas vezes na vida, isto é, que a mesma doença tornava o organismo imune para novo ataque. Essa imunidade, que assim se adquiria, a que era devida? Fosse a que fosse, era considerada como resultante de processos de ordem geral e não á acção isolada de um qualquer tecido ou orgão.
Quando eu era rapaz, a imunidade era considerada como de origem directamente celular. Sabia-se que certas celulas, isto é, as unidades, por assim dizer, que pela sua união constituem os tecidos e os orgãos, tinham a virtude de digerir os microbios. Deu-se-lhes o nome de fagocitos, que poderá ser traduzido, por quem saiba grego, pela expressão – celulas devoradoras. E era então uma luta entre os microbios que destruiam os tecidos e se multiplicavam por sucessivas gerações, e os tais fagocitos que os digeriam. O livro de Metchnikoff, sabio russo que trabalhava em França, em que a luta era descrita com tão vivas côres, como se tivesse por objecto as campanhas de Napoleão na Italia, merecia bem ser chamado o romance do fagocito.
Viu-se, porém, em breve, e bom foi isso porque dessa nova noção resultaram importantes conquistas no dominio da terapeutica, que, além dessa imunidade celular, havia uma imunidade humoral. O nosso organismo tem partes solidas e partes liquidas; estas ultimas são os humores. O sangue é um humor organico, o principal mesmo, pois é ele que conduz os alimentos para todos os orgãos, incluindo o oxigenio do ar que é tambem um alimento, e é por ele que os orgãos se libertam dos principios que elaboram.
Com esta descoberta da imunidade humoral veio a aplicação de sôros para tratamento de varias doenças microbianas. E logo os sabios arquitectaram teorias: um veneno microbiano, quando introduzido no sangue, dá lugar á formação duma substancia que lhe é contraria. Se a energia desta domina a do veneno, o organismo fica imunizado, e o sangue pode transferir essa propriedade a um outro organismo. Assim arranjámos sôros especificos de sangue de cavalo, de burro, etc., para tratamento de algumas doenças, com resultados favoraveis cujo beneficio ainda hoje estamos fruindo.
Algum leitor culto estará lembrando as anti-toxinas, aglutininas, precipitinas, receptores, amboceptores, sensibilizadoras… Desculpe-me que deixe para os sabios esse calão, com o qual eu e o publico nos não entenderiamos. Creio, mesmo, que haveria vantagem em expurgar a linguagem scientifica usual de termos que não correspondem a realidades, segundo o que actualmente pensamos. Mas vamos ao caso: Haveria então duas ordens de imunidade que se completavam, a das celulas e a dos humores, ambas de ordem geral. Notou-se, porém, o seguinte:
Uma doença, o carbunculo, só se adquire pela pele, e do mesmo modo a sua vacina. Quere-se inocular o carbunculo em outro orgão? Impossivel. Um individuo esfolado, se assim pudesse viver, não poderia ter doença carbunculosa. Ha, para esta doença, um orgão, a pele, que é o unico receptor; e a esta receptividade local corresponde uma imunidade local.
Então, na concepção de imunidade, ha que considerar um novo elemento: ela estabelece-se no tecido que é o receptor proprio da doença de que se trata, o que não quere dizer que sejam destituidos de valor os processos de imunidade geral atrás citados. Se ha que atender especialmente a essa imunidade local, compreende-se que se recorra a pensos especificos da pele quando é ela o orgão receptor da doença. Procura-se dêste modo criar aquela imunidade que os processos de ordem geral só trarão mais tarde ou que podem, mesmo, não trazer.
As teorias mudam, mas de cada uma delas nos fica uma ou outra conquista real. Depois, dos factos sobre que esta se estabeleceu, outras explicações serão dadas. Que importa. O progresso humano deu mais um passo; a riqueza da humanidade aumentou.
F. MIRA
(...).
[NOTA - Segue-se uma série de respostas aos leitores]