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Texto da entrada (ID.2581)

O Ancestral Augusto, feito d'immaterialidade e de gloria, ordenou certa vez a um astro, eterno gerador de luz, victorioso e fixo, que se apagasse por momentos, pois, na treva, o Ancestral queria operar. E o astro, chocado na sua dignidade de soberano e de clarificador d'outros astros, chorou uma lagrima caldeada, que veiu veloz e brilhante, com estrondo e com desespero, rodar no cahos. Assim se formou a terra, por um capricho do Ancestral Augusto, que na tarefa levou seis dias e ao setimo descançou.

Então, fosse como fosse, o homem appareceu, d'elle sahiu a mulher, sua companheira, que, ao vêr-se nas aguas mais bella do que o vigoroso Adão, mais fina, mais gracil, com pellos sedosos, emquanto os d'elle eram crespos, se tornou vaidosa e lhe gerou ciumes.

Ella, com o seu andar requebrado e com o seu riso, ia vêr-se sempre n'essas aguas onde assomavam flôres formando a moldura ao primeiro espelho inventado pelo instincto feminino.

[...]

Meditava pois Adão, na calma, a aparar com os dentes, agudos e em lança, um pedaço de certa arvore rija de que faria uma arma, a mais rude, mas a unica necessaria n'esses primeiros dias do mundo, quando ainda não havia exercitos e só feras.

Mas, de repente, erguia-se e ia cautelloso e encolhido, em passos miudos, velhaco e curioso, por entre a herva tão alta como as arvores de hoje, espreitar a Eva, que devia estar junto ao rio a mirar-se nas aguas, embevecida, admirada e cabelluda, aprendendo o primeiro olhar falso para ludibriar o marido á noite no aconchego da rocha.

[...]

Viu-a nua e grande, sã de mamillos fartos e tranças fulvas, gloriosa, a ser queimada na luz forte do sol, que escachava os fructos e seccava os riachos.

Comprehendeu tudo, o pobre Adão, surprehende-a a olhar-se nas aguas...Queria enganal-o!... Então, abafou um grito, pôz a descoberto a dentadura solida, ao arreganhar as maxillas duras e ferozes.

É que o corpo d'Eva, fino, branco e são, os mamillos rijos e as pernas nervosas, tudo isso se desenhava no chão, na terra, n'uma miragem, n'um prolongamento. Era a sombra que se alongava! Veiu então uma ideia ao primeiro homem de tomar a outra, essa sombra, de a guardar para si no fundo da caverna, sem lhe mostrar os rios que geravam a vaidade e as flôres que excitavam a espalharem perfumes.

Ao cerebro pêrro d'Adão acudiu um desejo: o de fazer por sua vez uma mulher.

Mais cautelloso do que nunca, avançou, com a sua arma, contornou bem a Sombra que se desenhava na terra, vincou-a fundo, não lhe perdeu uma linha, arredondou-a no traço, que se chapava na terra: fez um perfil e fez uma obra.

Riu, riu então n'uma gargalhada grossa, que imitava berros de chacaes. Ella voltou-se, lançou-lhe o olhar falso que ensaiara nas aguas; porém Adão, levando o indicador forte á palpebra inferior, dilatando o olho, maganão e sarcastico, mostrou-lhe o seu trabalho.

Era outra, era a nova companheira que elle escolhera.

Eva fugiu aterrorisada e a sombra acompanhou-a como um inimigo fero em caçada de morte. O primeiro homem olhava o solo barrento onde conseguira contornar o perfil da companheira...Viu então a inutilidade da obra. Aquillo não teria vida...Mas creara o primeiro desenho, reproduzira a primeira imagem, na primeira camada da terra!

[...]

Mas o que Adão julgara uma inutilidade, essa sombra seguida com a ponta de um aguçado madeiro e que ficara gravada na argilla paradisiaca, não o foi!

O desenho tornou-se uma arte pelos tempos fóra, reproduziu tudo, applicou-se a tudo, ao jornal e ao livro, por fim á revista que veiu completar o periodico.

Por isso o Seculo, que sempre tem desenvolvido em Portugal a arte e o gosto, sentiu a necessidade de se completar com a Illustração, n'um largo trabalho, cujo fim é o mais bello e o mais util.

A arte de hoje, manifestamente superior, tudo alcança e tudo reproduz, com ella se fabrica o album das grandes festas e dos casos triviaes, que irão aproveitar tanto aos homens de hoje como ás gerações vindouras.

No Paraizo, Adão, cradno o primeiro desenho, mal podia adivinhar o futuro d'elle, d'esse traçado que iniciou a arte pela qual se mostram os povos em todas as suas manifestações, na guerra como na paz, se mostram os homens na faina como no descanço, o rostosinho gaiato de Yvette Guilbert, como os carrancudos focinhos de Bismarck, indicando as successivas marchas d'esse mundo, formando pela lagrima caldeada do astro ás ordens do Ancestral, o unico que não se pode reproduzir, porque, vivendo tanto nos espaços como na terra, tanto nas aguas como no fogo, é immaterial mas forte, o Ancestral que tudo anima, o Espirito que é o moter de todas as revelações, de todas as grandes obras!

Rocha Martins


Referência bibliográfica

Rocha Martins - "Chronica - A revista da Revista" in Illustração Portugueza de 9 de Novembro de 1903, nº. 1, p. 2 (Página inteira). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=2581.



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