Sanidade animal
Manifestações da raiva no cão
É grande a analogia dos sintomas da raiva no homem e no cão. Devo porém desde já dizer que a hidrofobia, isto é, o horror á agua, não existe no cão, mas constitui no homem o fenomeno mais cruciante da doença, bastando a vista ou a simples representação mental da agua para provocar no paciente uma angustia indizivel, ao passo que no cão a presença da agua não produz essa sensação, pois que o animal procura o liquido, tenta bebê-lo, embora o não consiga, por o contacto da agua lhe provocar imediatamente o espasmo e a constrição violenta da faringe, tornando-lhe impossivel a deglutição.
Assim, haja no homem a hidrofobia e não a haja no cão, o resultado final em ambos os casos é sempre o mesmo – o tormento insuportavel da sêde, que devora ambos os doentes até á morte.
Já no primeiro artigo vimos que no cão entre o momento da infecção, realizada ordinariamente pela mordedura, e o aparecimento dos primeiros sintomas da raiva, decorre um periodo de incubação que pode variar de uma semana a pouco mais dum ano. Em regra, esse periodo regula por sessenta dias.
A doença, nas suas principais manifestações, afecta de ordinario o tipo furioso ou cerebral; ás vezes, porém, apresenta o tipo manso, espinal ou paralitico, menos impressionante que o primeiro, mas nem por isso menos fatal, pois ambos terminam pela morte dentro de dois a dez dias.
Na raiva do tipo furioso, ha diversas fases sucessivas, que podemos resumir em três: a melancolica, a maniaca e a paralitica. Estas três fases constituem um ciclo parecido com o de certas formas da loucura humana.
Durante a fase melancolica, o cão torna-se taciturno, esconde-se, tem horror á luz, sofre de alucinações da vista e do ouvido, perverte-se-lhe o apetite, ha dificuldade na deglutição, com aperto da guela, a sêde faz-se sentir vivamente, o animal procura a agua, mas tem dificuldade e pouco depois inteira impossibilidade de a beber, baba-se cada vez mais e por fim uiva lamentosamente, soltando uns sons que começam em tom grave e rouco para terminar, sem interrupção, por umas notas muito agudas.
Estes uivos lugubres podem considerarr-se caracteristicos da raiva furiosa.
A fase maniaca sucede á melancolica, da qual se distingue pelos acessos de furor que acometem o animal, sobretudo á vista de outro da sua especie, ou perante uma ameaça e ainda mesmo sem provocação. O acesso caracteriza-se pela subitaneidade com que o animal investe furiosamente, de olhos em fogo e pupilas muito dilatadas, mordendo com extrema violencia pessoas, animais e coisas, ás vezes a si mesmo, chegando a arrancar bocados da sua propria carne e a quebrar os dentes e os ossos maxilares, se abocanha corpos muito resistentes.
Cada acesso dura pouco, principalmente no começo desta fase, o cão pode readquirir o aspecto quasi normal e a antiga docilidade, lambendo até as mãos das pessoas amigas. Por vezes os ataques de furia semelham crises epilepticas ou a contracções do tétano.
Amiudando-se os acessos, o cão esgota-se rapidamente, entrando então na terceira fase – a paralitica, em que aparecem as dificuldades da marcha, mostrando-se o animal derreado, mal se sustendo nos membros posteriores e caminhando a custo.
A paralizia estende-se depressa aos membros anteriores e aos musculos de outras regiões, não tardando o cão a cair, debatendo-se penosamente, com a respiração ofegante, a boca entre-aberta e a escorrer baba, até que a paralizia invade os musculos respiratorios, morrendo então o animal por asfixia.
Desde os primeiros sintomas até á morte decorrem geralmente cinco dias, podendo todavia ir até dez ou encurtar-se a dois.
A raiva mansa não é tão alarmante como a furiosa. Caracteriza-se pelo predominio, quasi exclusivismo, dos sintomas paraliticos e pela impossibilidade e falta de vontade de morder. O mal manifesta-se logo de principio pela paralizia, geralmente dos musculos masséteres, apresentando-se o cão com a boca permanentemente aberta e muda, o olhar tranquilo, mas parado, sem expressão.
Ha o escoamento de baba pela bôca [sic], mas a lingua está recolhida. A paralizia vai alastrando para os membros e outras regiões, sucumbindo por fim o doente tambem por asfixia, sem nunca apresentar acessos de furor, antes mostrando-se dócil e afectuoso.
A saliva, nesta forma de raiva, é todavia tão virulenta como na raiva furiosa. A duração da raiva mansa é geralmente mais curta que a da raiva maniaca – o animal não dura, em regra, mais de três dias.
Quer num, quer no outro tipo, a raiva pode apresentar sintomas mais numerosos e diversos do que os que ficam descritos; os mais frequentes e caracteristicos são, porém, estes.
Em todos os casos – bom é insistir – na saliva é que reside o grande perigo da raiva, seja que o animal morda, seja que por afeição e caricia lamba alguma pessoa ou animal. Por isso, o simples contacto com um cão raivoso é motivo sério para suspeição de infecção rábica.
Apontadas as manifestações da doença no cão, resta dizer como podemos e devemos livrarmo-nos da raiva.
É o que farei num terceiro e ultimo artigo.
J. V. PAULA NOGUEIRA.
[NOTA - Contém três fotografias, cujas legendas são “Cão raivoso durante as alucinações”; “Cão raivoso na fase paralitica”; “Cão com raiva mansa”]
J. V. Paula Nogueira - "SANIDADE ANIMAL"
in Diário de Notícias
de 27 de Janeiro de 1925, nº. 21201, p. 5 (c. 6-7). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=2615.