Cronicas medicas
Higiene mental
Um medico que limite a sua actividade mental aos estudos directamente ligados com a pratica clinica, não só encerra o seu espirito em espaço acanhado cerceando-lhe materias sobre que raciocinio pode exercer-se com proveito, mas tambem não cumpre inteiramente os seus deveres profissionais. Os grandes medicos foram sempre pessoas de grande e variada cultura. O interesse pelas sciencias que são base da medicina e ainda pelas outras sciencias e pelas humanidades alarga o material sobre que o juizo pode exercer-se, permite que se dê, mesmo ás coisas em que especialmente se trabalha, um sabor mais justo, torna – permita-se-me a frase – o juizo mais judicioso, o raciocinio mais claro. Ser especialista, sim, conhecer bem a sua especialidade, mas não limitar a atenção aos assuntos dessa especialidade.
Se é possivel, no medico clinico, a deformação profissional do juizo pelo encerramento do espirito nos cuidados da pratica clinica, mais o é nos homens de laboratorio, profissionais da investigação scientifica ou de analises subsidiarias da pratica clinica. Ha naqueles investigadores duas classes de individuos que poderiam designar-se pelas denominações de sabios de primeira ordem e sabios de segunda ordem. São de primeira ordem os que abrem novos caminhos ou, quando passam por vias já trilhadas, deixam da sua passagem um rasto de luz. São os que, como se disse de João Müller, nunca tentam uma série de trabalhos scientificos senão quando eles tendam á solução de um problema de ordem geral. Estes sabios são homens de alta cultura, alguns mesmo conseguindo brilhar em materia muito diversa da que constitui objecto dos seus estudos habituais.
O sabio que se confine no estreito espaço do seu gabinete ou do seu laboratorio passará, decorridos anos, a ver tudo através dos assuntos da sua profissão, ao microscopio ou ao telescopio conforme estuda celulas ou astros. Assim criará aquela deformação profissional que se traduz por um automatismo mental com «deficit» de reflexão e falseamento do raciocinio. Esse automatismo mental levá-lo-á ainda a perder a faculdade de se criticar a si proprio, mesmo nos dominios da especialidade que cultiva. Isolado primeiramente dentro duma especialidade, depois num cantinho dessa especialidade, depois numa teoria de alcance limitado que a esta diga respeito, não terá já olhos nem cerebro para tudo o mais que haja no mundo, nem mesmo para os progressos realizados fóra do acanhado limite em que confinou o espirito e que, por acaso, poderiam trazer consequencias que importem á propria teoriazinha a que sacrificou todos os seus pensamentos.
De proposito citei medicos clinicos e sabios investigadores por serem pessoas que vastos estudos preparatorios melhor apetrecham para resistir á deformação profissional. Se estes podem sofrer dela, calcule-se a que perigos estão expostas outras classes: o funcionario publico, por exemplo, que vê todas a manifestações de actividade através os [sic] artigos de determinados regulamentos; o magistrado, que só vê a letra expressa do codigo, confundindo lei com equidade. E ainda as classes de menos ilustração, servindo-se automaticamente das ferramentas de operario, e subordinando a propria mentalidade á de um jornal que lêem.
Podiam escrever-se colunas sobre essa deformação profissional, ilustrando a exposição com exemplos nacionais. Não vale a pena, porque o leitor, se quiser pensar nisso, encontrará no seu espirito o devido desenvolvimento. Resta apontar o remedio, que consiste sómente em procurar para o espirito uma vasta cultura, não para ter o gosto de armazenar conhecimentos, mas para dar ao raciocinio ampla materia com que as suas faculdades se desenvolvam, e para ver mais claramente e dar a importancia devida aos assuntos que constituem a materia que se cultiva especialmente.
F. MIRA.
(…).
[NOTA - Segue-se uma´série de respostas aos leitores]