Educação fisica e desportiva
“A educação fisica, seus fins e atributos”
A educação fisica é a sciencia que estuda o desenvolvimento integral do homem encarado nos três aspectos: corpo, inteligencia e vontade – conglobando toda a vida fisica e psiquica do individuo, da sociedade e da raça
Continuamos hoje a publicação, iniciada no nosso ultimo numero, da conferencia do estudioso professor e propagandista sr. dr. Lendolphe Bravo, feita no liceu Pedro Nunes, sobre o tema «A educação fisica, seus fins e atributos»
O homem é um composto organico constituido por dois componentes, intima e indissoluvelmente ligados, que se chamam: «corpo» e «espirito». Nesta conformidade os educadores só poderão obter aquilo que tem jus a chamar-se «um homem» – quando a orientação educativa da criança seja conduzida por forma a alcançar o desenvolvimento completo, perfeito e integro de todos os seus orgãos e de todas as suas faculdades.
Todo o sistema de ensino, para ser racional, deve ser integral, visando, «ipso facto», simultaneamente, aqueles dois componentes: «intelectual» e «corporal» e nunca exclusivo num ou noutro sentido.
No primeiro caso, pode cair-se no grave erro, de em vez de formar intelectuais, formar-se criaturas doentes, que representam um valor negativo numa sociedade. No segundo, supôndo criar individuos proporcionados, harmonicos, robustos, esteticos e saudaveis, formam-se brutos, que representam um retrocesso á vida selvagem e que nada valorizam as sociedades civilizadas.
Só com a educação fisica, aplicada sistematicamente desde as escolas primarias, se poderá completar a educação intelectual e evitar os seus multiplos inconvenientes.
A educação fisica é a sciencia que estuda o desenvolvimento integral do homem encarado nos três aspectos: «corpo, inteligencia e vontade». Congloba, pois, esta tão vasta quão complexa sciencia toda a vida fisica e psiquica do individuo, da sociedade e da raça, segundo a feliz expressão do grande chefe de fila da educação física e grande sábio, o dr. Filipe Tissié.
O seu fim é, como disse, a formação da personalidade consciente, imprimindo-lhe por intermedio dos movimentos em quadruplo atributo: «beleza, saude, economia de forças e moralidade». Visa portanto a educação fisica a resolução de quatro importantes problemas sociais: o «estetico», o «higienico», o «economico» e o «moral».
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A educação fisica confere á criança aquela beleza real e viva que é o apanagio dos sãos do corpo e do espirito, desenvolvendo nela normalmente todo o seu plano estrutural.
A beleza a que me refiro, é, pois, a harmonia das proporções, o equilibro dos diferentes orgãos do corpo, obtidos pelos movimentos aplicados segundo a natureza organica e as regras gerais que presidem ao crescimento da criança.
Como consequencia logica deste primeiro atributo, é nas melhores condições de perfeição organica que se desempenham todas as funções que lhe são inerentes, circunstancia indispensavel para que um outro atributo primacial seja um facto – a «saude».
Depois da fisiologia do seculo XIX ter demonstrado que a educação do musculo tem a sua origem no sistema nervoso e que esta se faz por intermedio dos nervos, como verdadeiros condutores do influxo nervoso, emanado do receptaculo central (cerebro), reconheceu-se em todo o mundo culto que os movimentos exectuados pelos musculos não eram um «fim», mas apenas um «meio» de educar a criança, constituindo-lhe o seu modo de ser, – «a sua personalidade» – pelo desenvolvimento das respectivas faculdades cerebrais, tornando-se por este facto a educação fisica a principal base da educação geral. É esta uma verdade incontestavel e confirmada por dois novos atributos de ordem psiquica: a «economia de forças» e a «moralidade», que são a consagração mais bela e esplendorosa da influencia decisiva que a educação fisica exerce na constituição da criança, e por tal, da necessidade imperiosa da sua adaptação obrigatoria nas escolas.
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Pela educação fisica, a «economia de forças» é inoculada na criança pelo uso habitual dos movimentos faceis, ensinando-a a servir-se dos seus musculos, dando-lhe mais gracilidade e flexibilidade aos seus movimentos, pela perfeita adaptação das contracções musculares escolhidas para o fim que se pretende atingir. A «graça» dos movimentos é a verdadeira expressão da economia de forças. É, pois, um aspecto sob o qual podemos encarar esta.
O outro aspecto não menos interessante e util é a «destreza». Ser destro, é saber medir inteligentemente o seu esforço. O que se consegue pondo em acção o musculo ou musculos que pretendemos contrair, dando-lhe a força justamente a precisa patra atingir o fim desejado. Para que esta precisão seja alcançada, é indispensavel constante repetição dos mesmos movimentos, a fim de coordená-los, corrigi-los, o que demanda sem duvida a intervenção da inteligencia. «Mens sana in corpore sano», aforismo de Juvenal, que deixou á posteridade a verdadeira base scientifica da educação geral dos povos, para a qual se torna indispensavel atender á intensa e indissoluvel ligação que existe entre o fisico e o moral.
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A «moralidade» é o quatro e ultimo atributo conferido pela educação fisica. O que são os desportos e os jogos escolares, ao ar livre, se não admiraveis escolas de moral? Nos jogos e nos desportos todas as faculdades se desenvolvem. São poderosos meios de educação moral destinados a criar homens fortes, corajosos, energicos e devidamente preparados para a vida real e pratica. É sobretudo como instrumento de cultura moral que os jogos e os desportos são interessantes para o educador.
E, se não, vejamos: pela violencia que por vezes exigem e continuidade de esforços, têm uma acção poderosa sobre a «vontade», a «energia» a «perseverança»; pela rudeza de alguns deles, na luta, habituam á «coragem» e á «virilidade»; pela observação das regras complicadas dos jogos e pela submissão absoluta ás decisões do arbitro, são um meio de educação do «espirito da disciplina»; pela necessidade de apreciar a cada instante, situações novas e tomar rapidas decisões, são eminentemente proprios para desenvolver, o «golpe de vista», o «espirito da decisão» e o da «iniciativa»; enfim, pela obrigação que lhe impõe as variadas regras dos jogos, de conjugar os seus esforços com os dos seus companheiros e de se sacrificar muitas vezes o individuo pelo interesse colectivo, constitui o melhor meio actualmente conhecido para cultivar os sentimentos da «associação», da «solidariedade» e do «progresso». Podemos dizer que no estado actual dos nossos conhecimentos, como cultura moral, não temos hoje outro processo equivalente á nossa disposição.
A moral não se aprende nos livros, aprende-se praticando todos os dias actos de moralidade, e esses encontra-os a mocidade nos jogos e nos desportos. Pelo exposto, a educação fisica sendo administrada regrada e pautadamente segundo as leis de uma gimnastica psico-fisiologica, isto é, visando o completo desenvolvimento fisico e moral, deverá ter uma directa influencia na disciplina do espirito e do sistema nervoso e consequentemente em tudo que esteja debaixo da sua dependencia, tais como: pelo lado fisico, a respiração, a circulação, a digestão, a calorificação, etc.; e pelo psiquico, a atenção, o raciocinio, a reflexão, a ponderação. E de uma maneira geral diremos que a sua influencia deverá estender-se a todo o complexo organico, quer no que diz respeito ao físico, quer ao moral, concorrendo evidentemente para a formação integral do homem, isto é, da «pessoa».
Por todas estas razões, não cessaremos de repetir a indispensabilidade urgente da introdução obrigatoria nos programas de todos os graus de ensino, da educação fisica como condição indispensavel para a regeneração da nossa raça.
(Continua).
[NOTA - A realização da conferência, que começa neste número a ser publicada no Diário de Notícias, foi noticiada na edição n.º 21193, de 19 de Janeiro (p. 4, c. 4)]