Cronicas medicas
O raquitismo e a luz
Quando os alemães vieram dizer ao mundo que as crianças se tornavam raquiticas quando eram criadas em aposentos escuros, longe da luz vivificante do Sol, toda a gente os acreditou. Não só a afirmação partia dum povo a quem, com mais ou menos vontade, se estava reconhecendo a posse da hegemonia scientifica, como tambem satisfazia o espirito uma doutrina que considerava a luz, para nós como para as plantas, uma condição indispensavel de vida normal. Já se sabia que era necessaria a renovação do ar, desde que Lavoisier tinha explicado a acção do oxigenio nas combustões organicas; agora falava-se em que era necessaria a luz. Tenhamos, pois, casas onde entre francamente o ar e o sol, com o que se nos alegrará a alma e viverá vida saudavel o nosso corpo.
Diziam então os alemães: O raquitismo é mais frequente no fim do inverno e começo da primavera, porque as crianças são retidas, pela aspereza e frialdade do tempo, em aposentos de pouca luz. Vem abril; as crianças voltam ao ar livre, e o raquitismo desapareceu ou se atenua.
Já no tempo em que isto começou a dizer-se, os americanos, que chegaram tarde aos campos scientificos mas que os invadiram a passos gigantes, não estavam dispostos a acreditar sem verificação sua os dogmas que a velha Europa pretendesse impôr ao mundo. Os americanos, não só fizeram observações no intento de tirar a questão ao limpo, mas levaram o assunto para o campo exprimental. Viram então que os ratos brancos se raquitizam quando criados ás escuras, mesmo que a sua alimentação seja abundante e provida de certas substancias, como o fosforo e o calcio, consideradas tambem como factores anti-raquiticos. Se esses ratos eram expostos ao Sol todos os dias, mesmo que fosse sómente durante quinze minutos em cada dia, ou eles não se tornavam raquiticos, ou se curavam do seu raquitismo experimental quando o tivessem já contraido.
Os sabios são muito exigentes quanto a demonstrações, e os velhos partidarios da doutrina que consideravam como principais causas do raquitismo a sifilis e o alcoolismo dos pais, não se deram ainda por vencidos. Objectaram que os ratos em estado de liberdade são, por sua natureza, animais nocturnos, mal se compreendendo que se tornem raquiticos quando lhes falta uma condição de vida que eles não utilizam quando tratam de si sem intervenção de ninguem. Disse-se ainda que nos países do sul, citando-se a Italia e podendo citar-se Portugal, onde o Sol é medicamento que se pode tomar quasi todos os dias e onde o inverno áspero é tão curto, ha muitas crianças raquiticas, não as havendo na Groenlandia [sic], onde ha noites de quatro meses mas onde não ha nem alcoolismo nem sifilis.
Assim se ia debatendo a questão, quando, em 1919, a Alemanha lançou outra noticia sensacional referente a esta materia. Foi o sr. Huldschinsky, afirmando a acção curativa dos raios ultra-violetas a que ele submetia crianças raquiticas. Logo os americanos voltaram a incomodar os ratos brancos; e verificaram que, se os raios do Sol são preventivos ou curativos do raquitismo desses animais, em exposição diaria de quinze minutos, basta, para obter o mesmo efeito, empregando os raios ultra-violetas, numa exposição diaria de minuto e meio. Ao mesmo tempo, os americanos repetiram os ensaios terapeuticos de Huldschinsky. Não havia duvida: muitas crianças se curavam ou melhoravam, e os resultados do tratamento eram atestados por provas radiograficas.
Sucedeu, porém, que se estava falando, como muito tambem se fala ainda hoje, em vitaminas, e que uma outra doutrina, tambem defendida com muito boas razões por muito boa gente, atribuia o raquitismo á falta de uma dessas vitaminas na alimentação. Assim havia muito por onde escolher, quanto a causas possiveis do raquitismo: alcoolismo paterno, sifilis herdada, perturbações intestinais por erros de alimentação, carencia de fosforo, carencia de calcio, carencia duma vitamina especial, carencia de luz… Os ecleticos, uma especie de «je-m’enfichistes», aceitaram estas causas todas, como podendo qualquer delas tornar raquitica uma pobre criança.
Mas se a causa de doença pode ser discutida sem que deva assacar-se a quem a discuta a incredulidade de S. Tomé, a eficacia terapeutica dos raios ultra-violetas é que não tem, hoje, contestação. Com esse tratamento, as crianças, por via de regra, aumentam de peso, o seu estado geral melhora, o sangue enriquece e as lesões osseas mostram uma regressão, embora lenta, mas evidente.
F. MIRA.
(…).
[NOTA - Segue-se uma pequena resposta a leitora]