A Raiva devasta Portugal
Uma vergonha nacional, um verdadeiro crime de lesa humanidade, a que urge pôr cobro
NUMEROS DUMA RARA ELOQUENCIA
Em 1923, Sintra, a grande maravilha do turismo português, bateu o «récord» rabico de todos os concelhos, mandando a tratamento, ao Instituto Bacteriologico, 149 pessoas mordidas por cães danados.
A RAIVA EM PORTUGAL
Pessoas tratadas:
Em 1910 ………… 67
Em 1921 ………… 206
Em 1924 ………… 555!!
Em 1924 foram abatidos em Lisboa mais animais raivosos do que nos anos de 1913 a 1916.
São duas horas da tarde. Num longo e comprido corredor que atravessa dum extremo ao outro um dos pavilhões do Instituto Bacteriologico Camara Pestana comprimem-se cêrca de 250 pessoas. É a «bicha» do desleixo e da incuria nacional, das pessoas que vão ao tratamento anti-rábico.
Ao contrario daquelas que a guerra criou – a do açucar, a do azeite, a do carvão – constituidas quasi sempre pelas mesmas mulheres e pelas mesmas crianças, a «bicha» da raiva ataca todos, gente das cidades, gente do campo, gente das aldeias ou da beira-mar. Portugal inteiro, desde o Minho ao Algarve, está ali representado. (…).
Lisboa fornece para aquela «bicha» um largo contingente. Cêrca de 40 pessoas, de quasi todos os bairros, mordidas e arranhadas. O gato em Lisboa é um terrivel competidor do cão em materia de veículo transmissor da raiva. De resto, todos os animais nossos amigos se transformaram, por esse Portugal fóra, mercê de uma incuria, para estigmatizar a qual não ha palavras suficientemente energicas, em grandes inimigos do homem. O cão, o gato, o burro, o boi, o porco, a mula, o carneiro, a cabra, o cavalo, encarregaram-se de contagiar ao homem o terrivel virus. Medidas profilaticas nenhumas, absolutamente nenhumas, triste é confessá-lo, são empregadas. A campanha anti-rábica não é executada; um verdadeiro crime de lesa-Humanidade!
Temos na nossa frente o sr. dr. Luís Figueira, medico distintissimo, assistente do Instituto Bacteriologico Camara Pestana e director do Laboratorio do Hospital do Rego. Tem uma paixão que lhe absorve todas as faculdades: a sciencia. Tem um culto: a sua profissão. Ele e o seu ilustre colega Pereira da Silva batem o «récord» das vacinações anti-rabicas. Trezentas a quatrocentas mil vacinações. Reivindiquemos esta tão triste gloria! Em todo o mundo não ha dois medicos que tenham até hoje aplicado mais vacinações contra a raiva. Não julgue o leitor que aqueles clinicos são dois velhos. O dr. Luís Figueira, pelo menos, ainda não passa dos 30.
Ouçamos o distinto bacteriologista:
- Sim, a situação é simplesmente pavorosa e o que é pior é não haver ninguem que se disponha a enfrentar essa situação. Li algures que para se avaliar o grau de civilização dum país dois indicadores ha preciosos: a raiva e a variola.
Em Portugal, no que diz respeito a raiva, basta dizer-se o seguinte: De 367 pessoas tratadas no Instituto, em 1893, passaram a registar-se 1279 em 1910, para vermos este numero atingir 3452 em 1924. Mas não ficamos por aqui, infelizmente. No ano que está decorrendo, se as coisas assim continuarem á mercê de Deus, o numero de 6000 será, talvez, ultrapassado.
- ?!
- Não exagero. Portugal é o país onde a raiva está mais difundida… Nem a Russia dos «soviets» nos leva a palma.
«O Instituto Pasteur de Paris, servindo uma população nunca inferior a 15 milhões de almas, registou 754 pessoas tratadas em 1922. A Austria, de 1903 a 1919, com uma população de 46 milhões, registou nesses 17 anos 977 pessoas que receberam tratamento. A Tcheco-Slovaquia, com uma população de 20 milhões, registou, em 1922, 1802 pessoas, e Portugal, com os seus parcos seis milhões regista, só num ano, 3452. É um «récord» que se bate, mas um «récord» bem desgraçado.
«Na Dinamarca, na Australia, mesmo na nossa Ilha da Madeira, onde em tempos houve epidemias de raiva, graças ás medidas profilaticas adoptadas, medidas de resto facilimas de tomar, o mal desapareceu por completo. A Inglaterra, de 1903 a 1918, não registou um unico caso de raiva. No ano seguinte, porque o mal havia sido importado do continente, possivelmente quando do regresso das tropas em campanha, que consigo levavam uma infinidade de cães mascotes, registaram-se alguns casos. Houve tão completa observancia no cumprimento das medidas adoptadas, que, em novembro do ano findo, dava-se a raiva como completamente extinta, encerrando-se os postos anti-rábicos, como desnecessarios. (…).
«Com respeito á variola será suficiente dizer-lhe que em 1906, quando do Congresso Internacional de Medicina, um dos congressistas, eminente medico alemão, pediu com todo o empenho a um distinto colega português que lhe apresentasse um caso de variola, pois na sua larga vida profissional nunca lhe fôra dado examinar um semelhante caso!! Qual é dos nossos medicos aquele que não tem tratado de dezenas ou mesmo centenas de variolosos??
Curvámos a cabeça. O nosso coração de português confrangia-se a ouvir estas coisas, para nós tão deprimentes. Após um curto silencio arriscámos uma pergunta:
- Mas entre nós, o que se tem feito de eficaz para combater a raiva?
- A propaganda feita pelo Instituto a que, triste é confessá-lo, ninguem liga importancia. Por parte dos poderes constituidos apenas a legislação de João Franco. Tem de se reconhecer isso, dôa a quem doer. As medidas severas tomadas por esse homem de Estado que iam até á demissão pura e simples das autoridades administrativas, deram resultados muito apreciaveis e, assim, vemos descer a escala das pessoas tratadas de 768, em 1896, a 374, em 1897, e a 371, em 1898. Foi uma verdadeira razia de cães vadios. Houve até um governador civil que tão longe levou o seu zelo, tão a serio incarnou o seu papel de Herodes canino que, a determinada altura, o ministerio do Reino teve de lhe dizer, pouco mais ou menos, o seguinte: «Oh! homem, pare lá com a matança. A serem certos os numeros que você fornece nos boletins que nos envia já não deve haver um unico cão, não só no seu distrito, como em todo o país e ainda em boa parte da Espanha…»
- E depois desse tempo…
- João Franco saiu do governo e até agora mais nada se fez, subindo a raiva logo em proporções assustadoras.
- Contudo ouvimos falar na criação de um novo instituto?
- Quere que lhe fale com franqueza? Tanto eu como o meu colega, que temos de fazer mensalmente uma coisa muito parecida com 3.750 vacinações anti-rábicas pela mais que modesta quantia de 14$00 – que tal é a esportula que o Estado de ha muito nos estabeleceu – só temos a folgar com essa criação. Agora a higiene publica tem tudo a perder. Se hoje com as dificuldades de deslocação a incuria no que diz respeito á raiva é o que se está vendo, com maiores facilidades no tratamento, onde iremos parar? Quere um exemplo tipico? A difteria, ha alguns anos, era considerada como uma doença mortal. Efectivamente, a mortalidade era de 80% sobre os casos manifestados. Todas as mães fugiam com os seus filhos da casa onde a difteria se havia manifestado como dum lugar maldito. Descobriu-se o sôro anti-difeterico [sic] e a mortalidade, nos casos de difteria, desceu até 5 a 10 %. Pois bem: hoje registam-se mais obitos por difteria do que naquela epoca. Porquê? Porque a confiança no sôro salvador fez descurar toda a precaução, todo o receio ao perigo do contagio. É o que virá a suceder com a criação de novos posos [sic] anti-rábicos.
- Mas o tratamento anti-rabico é curativo?
- Não senhor! É preciso que toda a gente saiba isso. Morre-se de raiva não obstante o tratamento, que apenas é preventivo. De 1893 a 1920 morreram, depois de terem sido tratadas no Instituto, 56 pessoas. A grande medida, ainda que isto pareça uma sentença de Mr. de La Palisse, é não se ser mordido, e para isso é preciso combater sem treguas o cão danado, o cão vadio.
«O tratamento consiste numa série de vacinações com as quais se pretende criar no organismo defesas contra o virus rábico. Pode acontecer – e é um facto de sobejo conhecido nos estudos biologicos – que o organismo vacinado não reaja, deixando de criar as substancias neutralizantes da acção mortifera do virus. Neste caso, quando os individuos se encontram inoculados pela baba ou saliva do animal raivoso, o virus segue a sua evolução até á morte do agredido. São estes casos as chamadas falhas do tratamento que mais devem ser consideradas falhas individuais do organismo vacinado.
(…).
[NOTA - com fotografias; legenda:
Á esquerda: A bicha desfilando perante o medico – Ao centro: Uma vacinação numa criancinha de colo que foi mordida por um cão raivoso – Á direita: Obtendo as vacinas para os tratamentos
No medalhão da esquerda: O dr. Luís Figueira – No da direita: O dr. Pereira da Silva]