Telegrafia sem fios e a segurança dos navios
Tendendo a desenvolver-se, cada vez mais, o emprego da T. S. F. a bordo dos pequenos barcos, inclusivé barcos de pesca, imperioso se torna mostrar não só as vantagens de tal aplicação, como ainda os inconvenientes resultantes duma deficiente instalação, a qual, de per si, só, poderá contribuir para uma navegação arriscada e não isenta de perigos.
Inumeros são os serviços que a radiotelegrafia presta á navegação, fornecendo-lhe, a par da hora do 1.º meridiano para o navegante poder determinar a sua longitude, os dados meteorologicos tão necessarios a bordo para o navio seguir com confiança a sua derrota e, ainda, os avisos de borrasca, quaudo [sic] venham a ser previstos ventos fortes.
Mas a aplicação mais admiravel da T. S. F. é indubitavelmente aquela que contribui para a segurança das vidas e dos haveres a bordo dos navios. Assim, se não fosse a T. S. F. conjugada com a heroicidade do telegrafista Philipp, que não abandonou o seu posto até o ultimo momento, sabendo bem que estava votado á morte, as 2.365 pessoas que iam a bordo do gigantesco transatlantico «Titanic» que, pela meia noite de 14 de abril de 1912, chocou com um «iceberg», na sua travessia entre a Inglaterra e a America do Norte, teriam totalmente desaparecido nesse mar glacial. Foi, pois, este heroi que, apesar de ir vendo, pouco a pouco, submergirem-se os seus aparelhos, não hesitou um só instante em continuar a lançar, no espaço, o sinal de alarme S. O. S., fazendo acorrer pressurosamente o paquete «Carpathia», que navegava nas suas proximidades, o qual apenas conseguiu salvar 865 pessoas, devido á falta de embarcações que comportassem os passageiros e a equipagem, como ainda á culpavel indiferença com que foi recebido este sinal de chamamento por alguns dos navios que navegavam perto do local, onde tão lugubremente se esboçava essa terrivel catastrofe, em que 1.500 pessoas se afundavam no abismo insondavel do oceano.
(…)
Já em 1911, graças aos radiogramas emitidos pelo «Republic», foram salvas algumas centenas de passageiros que este navio transportava.
Por estes e outros exemplos, que poderiamos apontar, se depreende o grande numero de vidas humanas que têm sido salvas pelas ondas hertzianas, postas habilmente em pratica pelos emeritos sabios Brauly e Marconi.
Porém, não obstante o incremento que a T. S. F. tem tido, nestes ultimos tempos, raros têm sido os congressos internacionais efectuados para tratar de assuntos que mais directamente se prendem com este ramos de electrotecnia, sendo o ultimo, se bem nos recorda, realizado em junho de 1912, o qual, reunido, ainda, sob a triste impressão do desastre do «Titanic», apenas se preocupou com a regulamentação dos serviços radio-telegraficos a bordo dos navios munidos de postos de T. S. F., impondo, como obrigatoria, a intercomunicação dos navios, a fim de assegurar o salvamento das vidas daqueles que vão a bordo, em caso de naufragio.
E é, naturalmente, pela raridade destes congressos, que muito ha ainda a tratar e discutir, não só sob o ponto de vsta dos serviços radio-telegraficos, como da tecnica necessaria para o seu bom funcionamento.
Um assunto igualmente digno de ser estudado num desses congressos e que desejariamos ver esclarecido, é o que se refere á serie de desastres atribuidos á T. S. F. pela influencia exercida por ela sobre a agulha magnetica a bordo, a qual, sendo perturbada gravemente, faz desviar o navio do caminho préviamente [sic] traçado, conduzindo algumas vezes, mesmo, ao encalhe.
Ora, segundo o nosso modo de ver, a emissão radio-telegrafica, quer por ondas «amortecidas», quer por ondas «mantidas», traduzindo-se sempre numa corrente alternativa ou, melhor, numa oscilação electrica, leva-nos a concluir que perturbação grave alguma deverá acarretar para a agulha, funcionando normalmente os aparelhos radio-telegraficos, visto as polaridades resultantes dessa emissão não deverem afectar a polaridade magnetica dos ferros do navio, atenta a frequente e ininterrupta variabilidade dos seus polos por segundo, contribuindo, quando muito, para uma ligeira desmagnetização da agulha. Pelo contrario, a falta de isolamento na antena e demais aparelhos acessorios e, mui peculiarmente, a má instalação da canalização electrica e do dinamo gerador da corrente do navio, que é «continua» e, consequentemente, duma polaridade constante, parece-nos dever afectar grandemente a agulha a bordo. A falta de isolamento, nos aparelhos e fios condutores da corrente contínua, determina a aparição de «terras», as quais são consideradas prejudiciais a bordo, por perturbarem a agulha e deteriorarem o casco, inconveniente este que toma um aspecto bastante mais grave, quando, por economia de alguns metros de fio, a canalização electrica é feita unifilarmente, isto é, servindo o casco do navio de «fio de retorno».
Ora, afigura-se-nos que neste caso se cometem duas grandes faltas, que são: 1.ª – predispôr a agulha para perturbações graves, porquanto, como é notorio, toda a corrente, tendo a propriedade de desenvolver um campo magnetico no espaço que cerca o condutor, no qual ela circula, vai exercer uma influencia tanto mais nociva, quanto maior fôr a intensidade da corrente. É isto o que nos ensina a Fisica, pelas leis de Ampère e de Laplace, dentre as varias leis sobre fenomenos electromagneticos; 2.ª – concorrer para a corrosão das chapas do casco pela electrolise eu se deve dar, quando mergulhadas na agua salgada. Eis, pois, como uma simples economia redunda numa dupla despesa, que é a de perturbar a agulha, desviando-a do caminho desejado que é sempre anti-economico, mesmo que não conduza ao encalhe, e a de diminuir a espessura da chapa pela corrosão.
Nos grandes navios esta perturbação poderá vir a ser bastante atenuada, visto a enorme distancia a que a agulha, quando judiciosamente situada, se encontra das volumosas massas de ferro e, mesmo, porque estes navios trazem, de ordinario, uma agulha «giroscopica», que, pela sua isenção dessas perturbações, pode servir para comparar os rumos indicados com os da agulha magnetica; mas, nos pequenos barcos, em que esta agulha nunca pode estar muito afastada das massas de ferro e que, pelo seu elevado custo e delicadeza do seu manejo, não se torna facil adquirir uma agulha giroscopica, tais faltas, constituindo um perigo para a navegação, devem ser absolutamente removidas. Assim o entendeu o Almirantado britanico, proibindo terminantemente o uso do sistema unifilar na canalização electrica, a bordo dos seus navios.
Enfim, a T. S. F., como todos os outros progressos, oferece inconvenientes que, não sendo insuperaveis, se podem reduzir ao minimo, desde que a sua aplicação se faça por uma forma criteriosa e scientifica, forma esta que ambicionariamos ver tratada e discutida amplamente nos congressos dessa especialidade, a fim de se poder formular uma opinião precisa sobre a epigrafe que encima este artigo, por ser de interesse geral para armadores, construtores e seguradores.
A. Ramos da Costa.
A. Ramos da Costa - "Telegrafia sem fios e a segurança dos navios"
in Diário de Notícias
de 17 de Fevereiro de 1925, nº. 21221, p. 4 (c. 1-4). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=2762.
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