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Cultura estrangeira cultura portuguesa

Historia das Matematicas na Antiguidade, por Fernando de Almeida e Vasconcelos, edit. Aillaud e Bertrand, Lisboa, 1925

Tenho muita pena de não poder aplaudir sem reservas e observações restritivas a obra que o sr. Fernando de Almeida e Vasconcelos acaba de publicar – umas 600 paginas que eu estava muito longe de supôr que se escrevessem em português e que, escritas, encontrassem quem as editasse. Uma Historia das Matematicas, na Antiguidade, na Idade Media ou na epoca contemporanea, tem, em Portugal, um publico restritissimo. E este, evidentemente, não esteve, até agora, á espera duma Historia das Matematicas – tantas ha já publicadas. Isto não quere dizer que incorra em pena de desagrado o sr. Fernando de Almeida e Vasconcelos, pela obra que escreveu. Mas, instintivamente, o nosso espirito, ao folheá-la, pregunta [sic]: – para quê? para quem? Possui, agora, a literatura scientifica portuguesa, uma Historia das Matematicas na Antiguidade; mas nem careciam dela os matematicos, nem os estudiosos ou estudantes como nós, pois já tinhamos a de Maximilien Marle, a de Cantor, a de Rouse Ball, a de Hoefer, para não falarmos na de Montucla, nem nas historias locais ou especiais, como a de Zeuthen. Se a de Cantor e a de Hoefer não são muito acessiveis, as outras estão ao alcance de todos, pois que a de M. Marie não está esgotada, e a de Rouse Ball está traduzida em francês, por Frenud.

Compreendia-se que o sr. Fernando de Almeida e Vasconcelos escrevesse uma Historia das Matematicas na Antiguidade se formulasse doutrinas novas, soluções pessoais, criticas proprias, – isto é, se fizesse uma obra original, tanto quanto é possivel fazer-se, nesta altura, uma obra original – em investigação e em critica. Mas traduzir o que aquelas historias encerram, e fazer juizos pelos juizos que os outros fizeram, não me parece de grande vantagem, dada a qualidade dos leitores possiveis de obras desta natureza. Acresce ainda que o autor, sendo manifestamente prolixo a respeito de certas materias e certos problemas, é excessivamente laconico ou omisso, em relação a outros. Ha, na sua obra, divagações historicas, de historia geral, absolutamente dispensaveis, porque nem de perto nem de longe afectam a historia das matematicas, – com a agravante de serem guiadas por Mallet, autor dum simples manual escolar, ou por Oucken, que não é um historiador de primeira categoria. Revela o sr. Fernando de Almeida e Vasconcelos muitos apreciaveis, indiscutiveis faculdades de trabalhador. Porque as não aplicou, em vez de numa obra pouco menos do que inutil, em historiar as matematicas em Portugal, desde Pedro Nunes ao professor Gomes Teixeira? A monografia do sr. Rodolfo Guimarães «Les mathématiques en Portugal au XIX siècle» deixa-nos perceber os resultados que uma obra dessas produziria.

O estudo das matematicas, em Portugal, carece de desenvolvimento, pela sua influencia salutar sobre as inteligencias; e chamar a atenção para a cultura matematica portuguesa concorreria, pelo que nos parece, para esse desenvolvimento. Optimo que fôsse, a par dum sabio, um filosofo tambem, quem tomasse á sua conta essa tarefa de real patriotismo, para que a inteligencia portuguesa saísse do caminho facil dos lugares comuns, das frases feitas e das doutrinas inaveriguadas.

A matematica é um magnifico instrumento scientifico. A sua aplicação ás sciencias tem aberto a estas horizontes larguissimos. E só é pena que não seja possivel matematizar todas as sciencias. Magnifico instrumento chamamos á matematica – e muito propositadamente o fizemos, fugindo de dizer que ela é uma sciencia, porque averiguado está que sciencia não é. Quando muito, podemos dizer, como Wundt, que é uma sciencia auxiliar. A sciencia é um conjunto de hipoteses-leis, as quais não são mais do que relações constantes entre fenomenos. Ora não ha fenomenos matematicos. Os fenomenos mais gerais e mais simples são os astronomicos: a astronomia é, portanto, a primeira das sciencias, a primeira, na escala hierarquica. A matematica, como instrumento, aplica-se á astronomia, á fisica, á quimica, á biologia, á sociologia, á moral. E é apoiada na matematica, utilizando-a, que cada uma dessas sciencias atinge as condições de poder formular conclusões mais ou menos duradoiras. Infaliveis? Claro que não – porque toda a sciencia é falivel, como todo o instrumento scientifico, incluindo o matematico, é falivel. Á medida que aumenta a complexidade dos fenomenos, a aplicação do instrumento matematico torna-se mais dificil. A psico-fisica não passa duma tentativa, e as aplicações da matematica á economia têm resultado estereis. É que os fenomenos sociologicos e os fenomenos economicos não são precisamente os fenomenos astronomicos… É susceptivel de aperfeiçoamento, o instrumento matematico? A sua historia diz-nos que sim. Só o conhecimento dos fenomenos psicologicos, sociais e morais é que nos não parece capaz de poder aproveitar o admiravel instrumento que é a matematica. Mas deixemos isso, e vamos ás observações que nos sugeriu a leitura do livro do sr. Fernando de Almeida e Vasconcelos, observações que formulamos em homenagem ao autor, que merece mais alguma coisa do que as manifestações insipidas duma critica que critica sem ler. Como o sr. Almeida e Vasconcelos se não limita a historiar puramente as matematicas na antiguidade, e, antes, no proprio texto, e em notas, se refere a homens e factos de todas as idades, temos que o acompanhar na nossa critica – a qual não será exaustiva, porque espaço nos falta, mas será séria, por uma questão de pundonor. Assim, estranhamos que S. Ex.ª, ao referir-se, a pag. 47 da sua obra, a Poincaré, não cite um dos seus trabalhos do maior alcance filosofico e scientifico, as suas «Leçons sur les Hypothèses cosmogoniques». A pag. 119, o autor escreve que os gregos foram buscar o alfabeto aos fenicios, que o tinham inventado. Isso não é assim, a despeito de Renan. Sem pôr em duvida a influencia que o alfabeto fenicio exerceu sobre o grego, foram os egeus que forneceram a gregos e fenicios o alfabeto. Em varios lugares da sua obra, o autor atribui datas fixas, precisas, aos matematicos sobre os quais nada ha de averiguado quanto á epoca certa do seu nascimento e da sua morte. A pag. 171, o autor, referindo-se ao teorema de Pitagoras sobre a equivalencia entre o quadrado da hipotenusa dum triangulo rectangulo e a sôma dos quadrados dos dois lados do angulo recto, dá uma só das possiveis redacções, podendo e devendo dar as duas que Rouse Ball («Hist. des Mathématiques», I, pag. 26) apresenta.

Ainda em referencia ao mesmo teorema, o autor, fundando-se em Proclo, (directa ou indirectamente?) diz que a noção do numero irracional se deve a Pitagoras. Ora hoje sabe-se que a relação estabelecida por aquele teorema é de origem hindu, de oito seculos antes de Cristo (Brunschvicg, «Lés étapes de la Philosophie Mathematique», pag. 46). A pag. 189, o autor, falando de Antiphonte e Brison, escreve: «nenhum destes dois filosofos teve a ideia de considerar o circulo como limite destes poligonos» (o inscrito e o circunscrito). Identicos, no fundo, os processos dos dois, não entendia Brison que a superficie do circulo é a média aritmetica das superficies dos dois poligonos – o inscrito e o circunscrito?

A pag. 297, o autor fala-nos em «geometrias anti-euclidianas, a que estão ligados os nomes celebres de Lobatschewsky, Bolyai e Riemann.» Anti-euclidianas? Parece-me expressão tão pouco feliz, como a de geometria astral que tambem se lhe deu. No dicionario grego-francês de Chassang, encontro «anti» significando «contra». Sem querermos entrar agora na discussão dos pontos de vista que Poincaré tão brilhantemente expõe («La Science et l’Hipothèse?», pag. 56 e seg.) sobre a interpretação das geometrias não-euclidianas, temos, no entanto, que dizer que as geometrias de Lobatschewsky, Boliay [sic], Riemann e Stadnt não são anti-euclidianas, embora não-euclidianas sejam. Elas não repoisam em principios contrarios ao celebre 5.º Postulado (Proposição XXIX do livro I dos «Elementos») de Euclides, mas sim em principios diversos – o que faz a sua diferença. Quando, ha alguns anos, ha uns vinte anos, caímos, em Coimbra, sobre a «Pangeometria» de Lobatschewsky, ficámos varado e iamos perdendo o equilibrio. Hoje, ninguem chama com fundamento ás geometrias não-euclidianas, um romance, como o francês Alfred Fouillée («Le mouvement positiviste», pag. 40) que ainda errava quando se referia, como muito boa gente, aliás, á geometria não-euclidiana, como se só houvesse uma. A verdade é que se o 5.º Postulado de Euclides é indemonstravel – e a teoria das tentativas é longa, como se pode ver em Louis Rougier («La Philosophie Géometrique de H. Poincaré[»], pag. 37 e seg.) – se ele é indemonstravel, que mais vale scientificamente á geometria de Euclides do que as não-euclidianas? Para a justa apreciação dêste complicado problema, cumpre mesmo não esquecer as interpolações de que os «Elementos» de Euclides foram vitimas. Quando Leibniz («Oeuvres», I, pag. 415) escreve que Euclides foi obrigado a recorrer a dois axiomas para uma demonstração, o que diz que duas rectas não têm parte comum e o que diz que elas não compreendem esp[…], mal sabia ele que havia de averiguar-se que esses pretendidos axiomas, não passam a interpolações, sendo o segundo tirado do 4.º teorema do livro I.

Não quero dizer até onde me levaria a afirmação do sr. Mansion («Revue neo-scolastique[»], 1896, pag. 250) sobre a natureza simultaneamente riemanniana, euclidiana e lobatschewskyana do triangulo rectengulo isosceles, nem as considerações que me sugere o sr. Delboeuf quando escreve que as geometrias de Lobatschwesky e de Riemann são mais gerais e mais compreensiveis do que a geometria chamada euclidiana. Corto cerce a minha vontade de tagarelar, dizendo que está á espera de refutação (o sr. Berthelot, em «Un Romantisme utilitaire», pag. 277 e seg., não conseguiu o seu objectivo) o ponto de vista em que se colocou Poincaré e que tão nitidamente formulou na sua memoria sobre os fundamentos da geometria: «preguntar se a geometria de Euclides é verdadeira e a de Lobatschwesky falsa, é tão absurdo como preguntar se o sistema metrico é verdadeiro e o da toesa, do pé e da polegada falso. Se as nossas experiencias fôssem consideravelmente diferentes, a geometria de Euclides não bastaria para as representar comodamente, e teriamos que escolher uma geometria diversa.»

Voltando ao sr. Fernando de Almeida e Vasconcelos – porque afirma que é mais verosimil (pag. 329) a morte de Arquimedes ás mãos da soldadesca cobiçosa? Porque o diz Ball? A pag. 361, o autor aceita como sendo de Arquimedes o celebre problema dos bois do Sol que Nessermann (Ball, obra cit., pag. 77) diz que erradamente lhe foi atribuido. A pag. 433, o autor coloca Herão de Alexandria, Herão o velho, entre o ano 50 a. c. e o ano 50 d. d. c.[sic]. Em que se funda o autor para tal precisão? No coracter [sic] da obra, como afirma? Sem querer melindrar – o que seria indigno de nós – o autor, perguntamos: leu-a? Mas a «Dioptoica» é de Herão o velho? M. Marie escreve: «a hipotese de que Herão o velho tenha encontrado cêrca do ano 100 a formula da area dum triangulo em função dos seus lados, parece-me apresentar inverosimilhanças ainda maiores.» Visto ter escrito uma Historia das Matematicas na Antiguidade, o sr. Fernando de A. e Vasconcelos devia ter discutido este problema, alegando razões pessoais, fundadas no conhecimento directo dos seus elementos. Trata-se de que aquela formula seja simples interpolação, como pretende Liboi? Mas os outros argumentos de M. Marie? A pag. 470, o autor diz que o Almagesto de Ptolomeo deriva do arabe Al-Midschisti. Segundo Littré, vem de «al-madjisti». Teria achado bem que o autor expusesse, a pag. 496, com precisão, o que ha sobre o chamado teorema de Guldin, pois ficamos sem saber porque preferiu a tradução de Montucla á de Rodet, por exemplo, que Marie (obra cit., II, pag. 55) reproduz. Quando se refere á morte de Hypathia (pag. 536), o autor devia conhecer o estudo de Schäffer publicado em «The Catholic University Bulletin», de outubro de 1902, pag. 441 e seg. Quando trata de Boecio, o autor atribui-lhe umas «Consolatio». A obra que Boecio escreveu quando estava preso, chama-se «De consolatione philosophiae». Tenho que terminar: duas ligeiras observações apenas: a pag. 589, o autor escreve: «são do Alcorão…». Do Alcorão, não; ou do Corão, ou de Alcorão. O livro religioso dos arabes não se chama Alcorão; chama-se Corão. A pag. 607, o autor diz que «medico e algebrista foram sinonimos durante muito tempo». O nosso Morais e Silva distinguia «álgebra» de «algébra», sendo esta, para ele, a arte de concertar os ossos deslocados. Mas é escusado ir tão longe. O algebrista era o concertador de ossos. Era e é. Mas sinonimo de medico, não.

Eis algumas das observações que nos sugeriu a leitura do trabalho do sr. Fernando de Almeida e Vasconcelos, que pela intenção com que foi escrito e pelas canseiras que deu ao autor, merecia que lhe fizessemos esta larga referencia, repetindo nós que lamentamos que quem tão pacientemente organizou estas 600 paginas, não se tivesse dedicado a uma historia das matematicas em Portugal, ou dos matematicos portugueses.


Referência bibliográfica

[n.d.] - "Cultura estrangeira cultura portuguesa" in Diário de Notícias de 13 de Maio de 1925, nº. 21304, p. 5 (margem inferior). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=2777.



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