CRONICAS MEDICAS
A moda desportiva
Portugal está seguindo apaixonadamente a moda europeia dos desportos. Ha dias, quando se realizou o desafio de «foot-ball» entre portugueses e espanhois, todos puderam reconhecer o interesse com que uma grande parte da população lisboeta esperava noticias, interesse mais vivo e mais generalizado do que o sentido perante a luta politica que se travou entre as direitas e as esquerdas democraticas. Quando não tem desafios internacionais para se entusiasmar, Lisboa acaricia os desportistas provincianos que vêem jogar nos seus campos, formando grupos baptizados com denominações em que se combinam a ingenuidade e o espirito combativo em linguagem misturada de português e inglês. Ha cêrca de meio seculo essas denominações e entusiasmo cabiam ás filarmonicas. Agora são os grupos desportistas que adoptam titulos como, por exemplo, «Gloria ou Morte Foot-Ball Club».
Como a moda não é exclusivamente portuguesa, não pode procurar-se-lhe a origem em tendencias particulares da nossa gente ou acontecimentos passados aquem-fronteiras. Estou convencido de que ela se firma nas tendencias gerais da gente moça para a luta e para o jogo, especializadas na pratica de desportos pela propaganda insistente de que essa pratica é conveniente para o desenvolvimento harmonico do corpo e para a saude fisica e mental de quem a exerce.
Essa propaganda é feita por pessoas interessadas, os empresarios de especteculos e quantos têm nessa exibição de homens em luta quaisquer proveitos de dinheiro, e tambem por pessoas de boa fé. A Grecia tinha os jogos olimpicos, a educação fisica altamente desenvolvida e artistas de tanto merito que imortalizaram no marmore atitudes de atletas. Pois imitemos os gregos. Sómente me parece que não os imitamos bem.
Na Grecia dos bons tempos, os rapazes eram obrigados de começo a exercicios fisicos sem acentuada especialização, de modo que o trabalho era repartido por todos os musculos e todos se desenvolviam harmonicamente. Era geral a pratica dos cinco exercicios ou jogos – a luta, o salto, o disco, o dardo, a carreira. E esses exercicios fisicos variados continuavam como preparação individual para as fadigas da guerra.
Quando se especializava um individuo[,] um atleta ou corredor, era depois de ter alcançado aquele desenvolvimento harmonico que, na realidade, garante boas condições de saude. Assim vinham como obrigação geral os uteis exercicios básicos; vinha por fim, para os mais bem dotados, a luta desportiva.
As coisas mudaram na propria Grecia e sob o dominio romano, e a profissão de atleta chegou a ser deprezada. Criaram-se individuos com aptidões especiais desenvolvidas á custa de graves deficiencias, para o que se aproveitavam barbaros dos povos sujeitos a Roma, grosseiros, mal conformados de corpo, feios de forma e curtos de espirito. Foi-se tão longe no sentido de especialização desportiva contraria ao harmonico desenvolvimento do organismo, que o atleta chegou a ser tido como um homem facilmente sujeito a doenças. É, pelo menos, o que deles diz Galeno: «Sob o ponto de vista da saude, não ha mais miseravel condição que a dos atletas. São predispostos a adoecer pelos motivos mais simples.»
Modernamente alguns medicos têm prevenido os povos do erro grave que consiste em confundir os exercicios fisicos proveitosos para a saude e beleza do corpo com a pratica dos desportos, os primeiros sempre uteis, os segundos frequentemente nocivos. Na luta desportiva, a emulação leva cada um a empregar todas a suas forças, com o que o seu organismo se sente mais tarde abalado, quando não se declaram, mesmo em seguida ao esforço, fenomenos de esgotamento nervoso, intoxicações e acidentes febris.
Sob o ponto de vista estetico tambem não ha que agradecer aos desportos. O esgrimista deforma a côxa direita por demasiado desenvolvimento do quadricipite crural em relação ao dos outros musculos, pelo mesmo motivo que engrossam as pernas das bailarinas profissionais sem correspondente desenvolvimento da restante musculatura E ninguem reconhece elegancia num lutador dos pesados, cujas vantagens aumentam com a corpulencia desmedida.
Em resumo: É bom que a mocidade pratique exercicios fisicos variados; é mau que se especialize em um desporto que lhe desenvolva certos grupos musculares e não outros; é pessimo que exagere a pratica desportiva excedendo o que as suas forças possam razoavelmente comportar. Não tendo isto em conta, encontrará mais depressa a morte do que a gloria qualquer associado do «Gloria ou Morte Foot-Ball Club».
F. MIRA.
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[NOTA - segue-se uma pequena série de respostas a leitores]
F. MIRA - "CRONICAS MEDICAS"
in Diário de Notícias
de 27 de Maio de 1925, nº. 21318, p. 3 (c. 1). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=2796.