CRONICAS MEDICAS
Lepra e gafarias
A lepra, como a colera ou a peste pertence ao numero daquelas doenças cujo nome evoca historicos horrores. Tem seu tratamento, e geral de duvidosa eficacia, mas exige principalmente medidas de defesa contra o seu contagio, porque é transmissivel como qualquer outra doença microbiana.
Estão recenseados os leprosos portugueses? Se o estão, ignoro-o eu. Sei, porém, que estão recenseados desde 1923 os leprosos da Indo-China, em numero total de 5.813 nessa data, dos quais 4.454 estavam internados em gafarias, 283 submetidos a vigilancia administrativa, 1.301 em via de serem internados e 956 evadidos.
As gafarias são aldeias de isolamento onde muitos doentes vivem livremente, sómente adstritos ao tratamento que lhes é prescrito, e outros vivem em clausura. São estes os recalcitrantes, os que têm graves mutilações, os que trazem para os outros perigo de contagio. Ha tambem enfermarias para os doentes cujo estado exige determinados tratamentos.
Podem viver fóra das aldeias de gafos os doentes que têm possibilidades de realizar o proprio isolamento em vivenda que lhes pertença. São esses os que figuram no recenseamento citado como sujeitos a vigilancia administrativa.
A vida livre dentro da aldeia de leprosos importa a necessidade de protecção para um certo numero de crianças nascidas de casais doentes, visto haver a mistura de sexos que era interdita nas antigas gafarias. Entende-se que as crianças devem ser tiradas ás mães durante o periodo de 48 horas que segue o seu nascimento.
Temos uma gafaria em Moçambique, na ilha dos Elefantes, a respeito da qual escreveu recentemente o sr. dr. Brito Camacho no seu livro «Terra de Lendas»:
«A ilha não tem relêvo, como já disse; é coberta, no interior, de mato enfezado e discreto, que para nada serve a não ser para o lume. Atravessamos um campo de milho, tão enfezado como o mato, e chegamos ao que é, propriamente, a leprosaria, isto é, uma clareira onde os leprosos vivem em sordidas palhotas.
«Nunca vi espectaculo que tanto me repugnasse, sendo certo que as doenças da pele, por via de regra, são repugnantes. Quere-me parecer que tenho na minha presença todos os possiveis exemplares da lepra, a não ser os da lepra incipiente, porque esses – se fôssem só esses! – andam pela provincia em completa liberdade.
«Chamo a atenção do dr. Portugal, que me acompanha, clinico muito distinto, exercendo interinamente as funções de chefe de serviço de saude, para uma criancita de menos de dois anos que uma leprosa tem ao colo. Porventura aquela criança adquiriu a lepra por contagio, no ventre materno; mas como parece estar ainda isenta do terrivel mal, urgente se torna levá-la para Lourenço Marques, hospitalizando-a, porque deixando-a ficar entre leprosos, no mais intimo contacto com a mãe, virá a contagiar-se.
«- O teu filho vai para a cidade, para não vir a ter a tua doença.
«A desgraçada, cuja face é uma ulcera, e que mal pode andar porque já lhe caíram alguns dedos dos pés, aperta muito o filho contra o peito, e num chôro em que ha ternuras de mãe e furias de pantera, declara que não querer separar-se do seu filho, e que, se lho tirarem á força, se matará.
«O sacro-santo amor das mães – o mesmo em todas as raças!
«Anoitece.
«Pregunto [sic] áqueles miseraveis se precisam de alguma coisa, e parece-me que eles se consultam com os olhos, a quererem combinar uma resposta.
«Já na praia, aguardando que se aproxime a canôa que ha-de levar-nos para bordo do «Neptuno», um diabo alto, magro, roído da lepra desde os calcanhares aos olhos, aproxima-se de mim, fazendo a continencia militar, e numa voz roufenha, como de pessoa que respira pela bôca, obstruidas as fossas nasais, diz-me em bom português:
«- O que nós desejamos, sr. Alto Comissario, é mais tabaco e mulheres.
«Mais tabaco e mulheres!
«Resignam-se ao abandono em que os têm, sem assistencia medica, entregues aos cuidados dum enfermeiro que reside na Inhaca, e uma vez por semana lhes vem atirar de bordo duma lancha, só de longe em longe desembarcando, o milho de que se alimentam. Dir-se-ia que ainda hoje a lepra, em qualquer periodo da sua lenta evolução, é uma doença para a qual não ha tratamento que cure ou melhore, e que os leprosos, só pelo facto de o serem, gozam do privilegio de os não atacarem as vulgares doenças que afligem os outros mortais.
«Mais tabaco e mulheres!
«De quando em quando um leproso foge da ilha, atravessando o canal em maré baixa, talvez á procura dum cigarro, talvez á procura duma femea.
«Este deposito da ilha dos Elefantes é uma coisa que nos envergonha, porque inculca que estamos inteiramente fóra da sciencia medica do nosso tempo, e que corre parelhas com a nossa ignorancia[,] a nossa desumanidade.»
Julgo inutil insistir em quaisquer comentarios.
F. MIRA.
(…).
[NOTA - segue-se uma pequena série de respostas a leitores]
F. Mira - "CRONICAS MEDICAS"
in Diário de Notícias
de 11 de Junho de 1925, nº. 21333, p. 3 (c. 1). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=2806.