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Texto da entrada (ID.2838)

O perigo da raiva

Todas as experiencias feitas até agora com o alho no tratamento anti-rabico, deram simplesmente resultados negativos

O metodo de Pasteur, sendo indipensavel ás pessoas agredidas por animais raivosos, é apenas preventivo e não curativo, como muita gente imagina

As quatro mortes de individuos raivosos registadas no curto espaço de poucos dias, veio novamente pôr em foco o grave problema da luta anti-rabica. Se a hiperbole jornalistica «A raiva devasta Portugal» não é, felizmente, ainda a expressão da verdade, é-o a afirmação de que «a raiva inquieta Portugal». O egoismo ora reinante, em substituição do fraterno amor do proximo[,] o Evangelho, não deixa que nos preocupemos com a perda de algumas vidas desaparecidas pela incuria colectiva de todos nós que consentimos e ajudamos a não evitar as mortes evitaveis – raiva e variola –[.]

Pensemos, porém, um pouco, no tremendo sofrimento dos que ficam mordidos, aguardando a sua vez, mesmo tendo-se sujeitado ao tratamento vacinal preventivo de Pasteur. Imagine-se o leitor mordido, arranhado ou por outra forma contagiado por qualquer cão, gato ou outro animal suspeito de raiva, e recebendo esperançadamente o tratamento pasteuriano anti-rabico. A meio ou para o fim do tratamento, quando se julga de todo isento de perigo, vê aparecer com sintomas de raiva e seguir-se-lhe a morte, o seu vizinho e companheiro de tratamento, porventura mais adiantado nas suas sessões de vacinação pasteuriana anti-rabica e portanto invejadamente julgado mais livre do perigo. E perante o pavor natural dos nossos 160 ou 200 tratados diarios o medico vê-se na dura necessidade de confirmar e repetir que é assim mesmo; que apesar do tratamento morre-se de raiva; são os individuos que não reagem á imunização, ao pedido de formação das suas defesas organicas feito pelas vacinações, ou aqueles em que a virulencia exaltada do morbo rabico progride mais celeremente de [sic] que o processo de imunização. Suponde mesmo que o medico procura consolar-vos com a informação de que felizmente são em muito reduzido numero as mortes de individuos tratados, e que de varios milhares de pessoas agredidas por algumas centenas de milhar de cães suspeitos só um dos varios agredidos por um qualquer daqueles cães se mostra refractario á imunização. Por mais consoladoras que sejam as razões alegadas, perante vossa imaginação alarmada pairará sempre o aterrador receio de que sejais vós, leitores agredidos, um dos raros em que se dá a falha. Suponde bem quanto de acabrunhador ha neste receio de morte possivel iminente em que nem sequer a certeza dela existe a dsafiar [sic] o nosso problematico estoicismo.

O que vale o tratamento pasteuriano

É então ineficaz ou inutil o tratamento pasteuriano anti-rabico? É util, eficaz, necessario e indispensavel. Antes dele a mortalidade entre as pessoas agredidas atingia 70, 80 e por vezes 90 %. Actualmente e servindo-nos só das estatisticas do nosso Instituto Camara Pestana, a mortalidade foi de 0 % nos anos de 1901, 1906, 1907, 1908, 1911 respectivamente com 757, 1449, 1175, 1674 e 1697 pessoas tratadas, e oscilou entre 1,75 e 0,06 % nos restantes 27 anos desde 1893, em que começou a ministrar-se tratamento.

Ainda como exemplos frizantes da eficácia do tratamento lembramos que um dos individuos que recentemente morreu foi agredido pelo mesmo cão e na mesma ocasião em que o foram mais sete outros individuos que todos se conservam vivos, tendo terminados [sic] os seus tratamentos ha mais de três meses; dos 16 individuos agredidos num arraial em Alenquer e todos sujeitos a tratamento morreu só um deles, que não era dos mais gravemente mordidos; lembra-nos o caso do justamente indignado correspondente do Diario de Noticias em Lagos a quem morreu um dos filhos tratados, que fôra o menos mordido do que o pai e irmã, que felizmente julgo ainda vivos, passados dois ou três anos.

Á laia de conclusão deixemos aqui um grande conselho e receita á moda de M. de la Palisse: Para não se morrer da mordedura o unico remedio seguro é não se ser mordido. E para não se ser mordido é necessario evitar o cão vadio, que por não merecer interesse a dono que não tem deverá ser abatido, enquanto a benemerita Sociedade Protectora dos Animais (a besta humana excluida) não tiver realizado o seu generoso desejo de ter para os vadios um asilo ou albergue. Quanto áqueles que por qualquer merecimento haja necessidade ou interesse em conservar, sejam obrigatoriamente vacinados, para o que poderão ser valiosos colaboradores a Guarda Nacional Republicana nos meios rurais, e as Camaras Municipais nos grandes centros onde se acha regulamentada a posse e conservação dos animais, para o que dsipõem do pessoal de fiscalização necessario. Bom é lembrar que todos os problemas da higiene (o bem de cada um pelo concurso de todos e inversamente) estão intimamente ligados á disciplina social.

Enquanto o regedor e o administrador tiverem de condicionar o cumprimento dos Regulamentos de Sanidade, mandando sequestrar ou abater os animais suspeitos ou contagiados pela qualidade do dono do bicho contagiado e proximamente perigoso, segundo se trata de compadre ou correligionario ou de adversario, não ha profilaxia possivel da raiva.

É frequente voltarem á nossa consulta dentro de curto espaço de tempo após a alta, individuos novamente agredidos por animais que foram contagiados pelo mesmo animal á data da sua primeira agressão e que deviam ter sido abatidos, visto terem sido contagiados e não estarem previamente vacinados.

O emprego do alho na medicina

Ainda a funda impressão causada pelas recentes mortes de raivosos trouxe á balha o velho tratamento anti-rabico pelo alho das hortas – allium sativum –. Anda assim este acre tempero de vez em quando desinquietado das suas habilidades culinarias e armado em panacêa anti-rabica. O sr. C. A. da Amadora, no bom e louvavel desejo de contribuir com a sua colaboração para o uso de um remedio seguro contra a raiva julga interessante que a Sociedade das Sciencias Medicas se ocupe da alio-terápia anti-rabica e transcreve do «Diario Ilustrado» de 1882 a receita que o sr. Antonio Ferreira Moutinho formulou aos 65 anos para curar as mordeduras do cão danado sem ser necessario ir a Paris.

Não me perderei a historiar o interesse que, desde Aristóteles e Celso, passam por Magendié e Boorhave, até chegar a Pasteur e ao dr. Moutinho, sempre mereceu a prevenção e cura da raiva, e menos me embrenharei no estudo das simpatias e odios que as virtudes e defeitos do alho têm suscitado nos varios povos antigos, medievais e contemporaneos. Ainda hoje ele é detestado pelos povos do Norte da Europa, embora sem a sanha que contra ele tinham os gregos que vedavam a entrada nos templos aos que os comiam ou os castelhanos que explusavam da côrte o cavaleiro que deles usasse.

Devo, porém, apontar que sempre têm sido tidas em apreço as propriedades medicas do alho, que tem sido usado como vermifugo, tonico e antiseptico, contra a tuberculose e a asma, contra as convulsões infantis, a histeria, antídoto das mordeduras venenosas, e é elemento pobre do complicado vinagre dos quatro ladrões, etc. Tambem entre os russos é uma das mil substancias aconselhadas contra a raiva. Seria por intermedio do famoso medico português Ribeiro Sanches, que pontificou na côrte russa e de lá epistolou aos lusitanos, que o seu uso anti-rabico chegou até nós?

As experiencias de Gibier[,] de Camara Pestana e de Aníbal Betencourt [sic]

Seja como fôr, já no tempo em que a receita do dr. Moutinho foi divulgada, o alho havia sido ensaiado experimentalmente por Gibier em animais, sem qualquer outro resultado senão o da sua inutilidade como preventivo ou curativo da raiva. A iguais resultados chegaram entre nós os dois distintos professores Camara Pestana e Aníbal Bettencourt, os introdutores em Portugal dos métodos experimentais em biologia e fundadores e directores do Instituto Camara Pestana (aquele 1.º director tão precocemente falecido), que experimentando em cães os efeitos da administração de um preparado de alhos e outras plantas que em Santo Tirso era feito, reconheceram não só a inutilidade do remedio, mas até lhes ficou a suspeita de que os animais que ingeriam a mistela dos alhos morriam mais rapidamente e com formas mais graves.

Resta a experimentação em gente. Dificil tarefa esta. Quanto á aplicação local dos alhos pisados na mordedura, vemos-lhe o inconveniente da extensa escara e vesicação que eles produzem e que são por vezes de muito demorada cicatrização, sem dispensar o tratamento pasteuriano. A acção é correspondente á da queimadura com o ferro em braza, ainda de boa pratica, mas incompleta, por não se poder ter a certeza de que todo o virus da raiva que na mordedura tenha sido inoculado fique completamente destruido pelo calor. Tambem este não dispensa o tratamento segundo o método de Pasteur.

A experimentação pelo que respeita ao uso do alho por sugestão como preventivo parece-nos inviavel. Se se faz simultaneamente com o tratamento vacinal, são confusos os resultados por não ser possivel destrinçar a qual dos dois tratamentos se deve o não aparecimento de sintomas de raiva. Se se usa isoladamente o alho, cremos que ninguem tomará a responsabilidade da incriminação, que poderá ser feita em caso de morte, por não ter sido usado o tratamento vacinal.

Que na região de Santo Tirso, onde se faz uso só do alho como preventivo anti-rabico, não ha casos de morte rabica?! Não me parece provativa a razão, tanto mais que sabemos que são ainda felizmente muitos os concelhos onda [sic] não ha memoria de mortes de raivosos, mesmo sem o uso do alho. São regiões estas de resultados brilhantes para qualquer remedio anti-rabico.

É preciso aguardar oportunidade para se avaliarem as qualidades curativas do alho

Quanto á experimentação curativa nos casos declarados de raiva, é necessario aguardar a oportunidade de haver doentes atacados, e será muito para desejar que não voltem a aparecer, e do que fizer darei conta logo que possua quaisquer resultados.

Para justificar a reserva que desde já ponho, duvidando que o alho possa evitar todos os casos de morte pela raiva (se é que evita alguns), seja-nos permitida uma curta divagação pela terapeutica e patologia, a fim de lembrar que mesmo as doenças de agentes certos e determinados contra os quais dispomos de remedios de acção especifica bem averiguada, mesmo essas contribuem largamente para o obituario quotidiano. Morrem todos os dias sifiliticos, apesar de bem determinado o agente da sifilis, contra o qual dispomos da rica terapeutica dos mercuriais, dos arsenicais e dos preparados bismúticos. Morrem frequentemente diftéricos, apesar do conhecimento da biologia do bacilo da difeteria [sic], contra cuja toxina dispomos de sóros anti-tóxicos de alto poder. Morrem impaludados, apesar do conhecimento seguro da acção especifica da quinina sobre o respectivo parasita. Morrem meningiticos epidemicos, apesar do emprego dos sóros especificos anti-meningocócicos. E não vemos que a proposito das mortes de sifiliticos, difetericos, meningiticos, impaludados, se procurem ressuscitar os velhos usos e remedios: alhos, salsaparrilhas, etc. Contrasta com o silencio resignado com que assistimos a estas mortes, autenticas falhas dos respectivos tratamentos, o lamuriento e ruidoso rumor que a proposito de um caso de morte pela raiva se levanta na imprensa. Será pieguice, ou será antes o remorso pela nossa passividade em não reclamar e exigir as medidas que nos libertem de animais danados transmissores, evitando assim que possamos ser contagiados?

LUIS FIGUEIRA

medico do serviço anti-rabico

Instituto Camara Pestana


Referência bibliográfica

Luís Figueira - "O PERIGO DA RAIVA" in Diário de Notícias de 22 de Julho de 1925, nº. 21374, p. 1 (c. 1-2). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=2838.



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