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Higiene e gados

A raiva e o alho

O «Diario de Noticias» tem até hoje inserido nas suas colunas uma série de três artigos, que promete continuar, subordinados ao titulo geral de «Raiva», nos quais o sr. A. Barbosa, das Caldas de S. Pedro do Sul, preconiza para as pessoas mordidas por cão danado o tratamento preventivo e curativo daquela horrivel doença pela simples administração de três dentes de alho por dia, tomados ás comidas, durante um mês, ou ainda por seis gotas diarias de tintura homeopática de alho.

O sr. A. Barbosa declara não ser médico e tambem certamente não é veterinario. Se fosse uma ou outra coisa, quero crer que não teria iniciado a publicação desses seus artigos tão calorosamente inspirados na sua convicção pessoal do valor terapeutico do alho, quer na fase incubadora da raiva, quer já quando o mal está declarado.

São respeitabilissimas as opiniões e as intenções sinceras de cada um, e não serei eu quem as combata só por mero espirito de contradição. Mas assim como, embora noutro sentido, o poeta Dante dizia na sua «Divina Comédia», que o inferno estava pavimentado de boas intenções, assim no caso presente eu direi que nem sempre as intenções jusitificam as nossas acções. Salvo o devido respeito ao sr. A. Barbosa, cujos bem redigidos artigos tenho lido atentamente, discordo e reprovo a propaganda que Sua Ex.ª com tanto ardor está fazendo em favor do tratamento aliaceo da raiva[.] E, se o sr. Barbosa me permite, ousarei dizer que a sua propaganda é nefasta á saude publica, porque pode arrastar á morte pela raiva muitos infelizes que, fiados nos conselhos do propagandista, adoptarem esse comodo e barato tratamento, em vez de recorrer ao de Pasteur muito mais dispendioso e incomodativo.

De balde se procurará justifiar-se [sic] a preconização actual da terapeutica aliacea da raiva no facto historicamente incontestavel de haverem diversos medicos sustentado outrora a eficacia dessa terapeutica. É que a medicina antiga usava de metodos de estudo que hoje estão abandonados ou relegados para um plano inferior. Hoje a sciencia medica faz-se quasi toda pela experimentação, metodo ao qual noutro tempo pouco de recorria. A experimentação, muito melhor do que a observação somples [sic], é que permite estudar todas as condições necessarias á produção dos fenomenos cujo conhecimento intimo pretendemos alcançar.

Pois bem: a experimentação já foi feita relativamente ao valor preventivo e curativo do alho na raiva e os resultados do emprego do metodo experimental foram contrarios á crença do sr. A. Barbosa.

O alho não previne nem cura a raiva nos animais. Porque havia de preveni-la ou cura-la nas pessoas?

A patologia comparada do homem e dos animais dá-nos a certeza de que o medicamento eficaz na cura duma doença no homem, eficaz é tambem para a cura da mesma doença nos animais.

A pretendida observação de curas da raiva em pessoas tratadas pelo alho é ilusoria, como ilusorias foram as curas de tantas outras doenças, sobretudo as contagiosas, pela acção de muitos outros medicamentos hoje completamente postos de parte no tratamento dessas molestias. A historia, da medicina está cheia de narrações desses erros de observação clinica do passado. Querer fazer ressurgir agora tais tratamentos é trabalho inutil e, por vezes, prejudicial á saude publica, como no presente caso da raiva medicamentada pelo alho.

Eis a razão por que lealmente ouso dizer ao sr. A. Barbosa que está prestando um mau serviço aos portugueses com a sua insistencia, embora humanitariamente bem intencionada, do antiquissimo e condenado tratamento da raiva.

E agora, para terminar, permita-me o sr. Barbosa e consintam os meus leitores que lhes conte a pequena historia da experimentação scientifica que em Portugal se fez da terapeutica aliacea da raiva, em animais de laboratorio.

Foi em 1888, se bem me recordo. Ainda o meu saudoso amigo e grande martir da sciencia, o dr. Luis da Camara Pestana cursava as aulas da Escola Medico-Cirurgica de Lisboa e eu havia já dois anos que era professor de medicina veterinaria. Não existia, portanto, ainda o Instituto Bacteriologico, mais tarde fundado por aquele glorioso medico; mas já havia na minha Escola um modestissimo Laboratorio de Histologia e Bacteriologia, criado em 1886, em que trabalhavamos eu e o meu malogrado e sapientissimo mestre, o professor sr. Joaquim Inácio Ribeiro.

Dois medicos ilustres, o sr. dr. Fragoso Tavares, ainda felizmente vivo, e o sr. dr. Bordalo Pinheiro, já falecido, preocupados ambos com a propaganda, que então se fazia do alho como antídoto do virus rábico, resolveram submeter á experimentação scientifica essa terapeutica. Como a Escola Medica de Lisboa, por esse tempo, mal de acomodava num pardieiro do velho Hospital de S. José, onde não podiam instalar-se habitações para animais de experimentação laboratorial, aqueles dois ilustres clinicos, como era natural, visto terem de experimentar o método em animais, lembraram-se da Escola Superior de Medicina Veterinaria. Os dois medicos e os dois veterinarios associaram-se, pois, e deitaram mãos á obra. Escolheram coelhos; estes foram trepanados no craneo e inoculados no cerebro com o virus rábico; fizeram-se dois lotes dos coelhos inoculados, um lote para ser tratado pelo alho, o segundo para ficar servindo de testemunha. Certos coelhos do primeiro lote foram obrigados a comer dentes de alho; outros receberam injecções de tintura ou de essencia de alho. Pois bem: tanto morreram de raiva os coelhos do primeiro lote como os do segundo. Repetiram-se as experiencias, que duraram meses, variando certos detalhes; os resultados foram sempre negativos, porque todos os coelhos sucumbiram á raiva que lhes tinhamos inoculado.

Sr. A. Barbosa: não insista V. Ex.ª na sua propaganda se não quere [sic] um dia sentir terriveis remorsos, arrependido das suas boas e humanitarias intenções actuais.

O tratamento de Pasteur é, por enquanto, o unico eficaz contra a raiva.

J. V. PAULA NOGUEIRA

Professor.


Referência bibliográfica

J. V. Paula Nogueira - "Higiene e gados" in Diário de Notícias de 26 de Julho de 1925, nº. 21378, p. 7 (c. 6-7). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=2845.



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