Há cerca de dois meses a imprensa diaria fez referencias a uma descoberta importantissima em relação com a origem do cancro. Tratava-se de trabalhos realizados em Inglaterra pelos srs. Gye e Bernard, dos quais se podia concluir que o cancro tem origem parasitaria e é, portanto de natureza contagiosa.
Esperei, com a minha habitual prudencia que as revistas de especialidade se pronunciassem para só então falar do assunto com os leitores do “Diário de Notícias”. Posso fazê-lo hoje. A “Lancet” de 18 de Julho publicou um artigo de Gye sobre a Etiologia dos tumores malignos” e outro de Barnard sobre o “Exame microscopio dos virus filtrados associados ao crescimento dos tumores malignos”. Além disso, estes artigos mereceram já a crítica de pessoas competentes, entre as quais Roussy na Presse médicale, e Besredka no “Bulletin de l’Institut pasteur”. Podemos, portanto, tratar já a questão desafogadamente.
As experiencias de Gye e Barnard iniciaram-se sobre uma variedade de tumores das galinhas, o sarcoma infeccioso. Basta inocular numa galinha células desse tumor ou um extracto filtrado do mesmo para que ele se reproduza. Sucede que este tumor, que facilmente se transfere duma para outra galinha, não é transmissível aos mamíferos. É pois específico em dois sentidos: quanto á sua estrutura de tumor e quanto á especie de animal em que reside.
Um fragmento de tumor colocado num meio de cultura comunica a este o seu poder de reproduzir o tumor, isto é, comporta-se como sendo de natureza microbiana. Nota-se, porém, que o meio de cultura perde a sua virulência passados dias. Este fenómeno no dizer, dos autores ingleses, não representa a morte do “virus” mas o esgotamento de determinada substancia quimica do meio, visto que, juntando á cultura inactiva um pouco de filtrado de tumor, ela recupera a sua virulencia.
Supondo que não foi suficientemente claro no que precede, tentarei ser mais feliz citando a seguinte experiencia de Gye:
É proprio dos “virus” reproduzirem-se. Semeiam-se num liquido de cultura, de aí tira-se uma gota que se semeia noutro liquido de cultura, e assim se consegue obter uma série de líquidos virulentos. Cada sementeira representa uma “passagem”.
Gye, experimentando com a cultura da 8ª passagem, viu o seguinte:
A cultura inoculada isoladamente não forma tumor.
O filtrado de tumor inoculado isoladamente também não provoca o seu aparecimento.
Inoculando simultaneamente cultura e filtrado obtem-se um tumor que mata a galinha em 28 dias.
Gye experimentou ainda com tumores dos raiso cujo filtrado não tem poder infeccioso. Viu então que estes tumores abandonam um “virus” ao amio de cultura, o qual é activado pelo filtrado do sarcoma infeccioso das galinhas. Isto é: o factor especifico existe para o caso, no sarcoma das galinhas, e o “virus” existe no tumor do rato. Este “virus” é preciso para que se forme o tumor; mas a espécie deste depende do factor a que Gye chama quimico porque passa no filtrado.
Este “virus” cultivavel é, alem disso, visivel. Barnard conseguiu fotografá-lo aumentando a visibilidade do ultra-microscopio e utilizando para a fotografia as radiações ultra-violetas. O “virus” apresenta-se então sob a forma de pequeníssimas esferas.
Agora que o leitor conhece resumidamente os trabalhos de gye e Barnard devo chamar-lhe a atenção para as seguintes objecções:
Supondo mesmo que as suas experiencias são confirmadas por outros investigadores, elas dizem sómente respeito aos sarcomas; e estes tumores formam um grupo mal diferenciado dos processos inflamatórios parecendo ter maior parentesco com estes do que com os tumores cancerosos. Não se pode, portanto, dizer que os nossos conhecimentos sobre o tratamento e mesmo sobre a origem do cancro tivessem qualquer progresso com os trabalhos de Gye e Barnard. Isso não importa, porém, que se negue o alto valor dos seus estudos sob o ponto de vista biológico e mesmo sob o ponto a possibilidade de interessantes consequencias de ordem pratica.
F. Mira
F. Mira - "Cronicas Medicas"
in Diário de Notícias
de 2 de Setembro de 1925, nº. 21416, p. 3 (c. 2). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=3373.