O pó de arroz

Ao encarar hoje com um figurino de montra, feio e anómalo, de feições côradas de pardo, lembrei-me de uma outra montra que admirei em Paris, não longe da igreja de Notre Dame de Lorente, onde um rico mostruario de pós de arroz trazia só espirito de quem quer que fosse um forte sentimento de gratidão pelas mulheres que não hesitam em mudar a cor do rosto para criar motivos inéditos de encanto. “Varietas delectat”, diziam os antigos. Com uma colecção de pós de arroz diferentemente coloridos , qualquer mulher, guardando as seduções da sua habitual intimidade, acresce-as com as da novidade resultante da mudança de aspecto. Hoje rosada, amanha morena, agora cor de malva, logo branca como os lirios e no fundo sempre a mesma mulher que uma vez soube prender.

A lembrança que me veio do mostruario de Paris levou-me o pensamento para o abismo que separa dos actuais os pós de arroz das nossas avós. O que actualmente se vende como pó de arroz não tem dele mais que o nome e as nossas mulheres do século XX repetiriam o antigo, o verdadeiro, julgando-o falsificado. Mais fino, mais facilmente aderente é o pó de arroz de amido de trigo; mas este mesmo está sendo substituido pelos pós minerais mais finos ainda e que não fermentam ao contacto das secrecções cutaneas.

O bom pó de arroz, em geral, como base, uma mistura de talco, carbonato de cálcio e carbonato de magnésio a que se adicionam frequentemente estearato de zinco, oxido de do mesmo metal, caolino, etc. Mas no bom pó de arroz não ha somente a considerar a finura, a facilidade em aderir á pele e em se espalhar por ela. Há também que ter em conta a côr e o seu perfume, A composição, perfume e corante são as três bases que caracterizam um pó de arroz.

Para diminuir o custo ha quem substitua parte do talco e carbonatos de magnésio e de calcio pelo carbonato de chumbo, que é tóxico, pelo protocloreto de mercurio, que é irritante, pelo subazotado de bismuto, que forma combinações com os sulfuretos naturais da pele, dando origem ao aparecimento de manchas negras. Dos perfumes não há que dizer quanto a danos que produzam, a não ser que seja demasiada a carga, a ponto de incomodar. Mas esse mal é facilmente evitavel pelo sinal que dá dele o olfacto, o que não sucede com a falsificação na composição do pó, só revelada pela análise química ou pelos maus efeitos observados com a sua aplicação.

As varias cores obtem-se com carmim, eosinato de potassio, etc, para os pós rosados; para os outros, com caolino corado, amido de trigo queimado, terra da Umbria, terra de Siena, belo de Armenia, tintura de açafrão, etc. A cor de malva consegue-se misturando o carmim com azul de cobalto ou de ultramar.

Alguns pós são de muito complexa composição. Abro um livro francês onde leio uma formula de pó Raquel perfumado. Tem almiscar artificial, heliotropina, vanilina, zauraia, essencia liquida de iris, alcool de jasmim, talco de veneza, caolino corado, carbonato de magnésio, pó de raiz de iris, oxido de zinco, amido e terra de Siena em pó. São dezassete drogas que algum quimico perfumista trabalhosamente juntou para que V. Exa pudesse mudar, segundo a moda ou o seu capricho, a cor naturalmente rosada do seu rosto numa outra cor, como muda de um para outro vestido.

Neste ano em Paris, usava-se a cor Japonesa e os figurinos das grandes modistas que assentaram tenda entre a Opera e a Praça Vandome, bem como os que constituiam mostruário na Exposição das Artes Decorativas, todos tinham o rosto pintado da cor da moda. Tinham tambem de notar a posição afectada e contrafeita dos membros particularmente das mãos, parecendo que a extrema elegancia deve agora consistir no absoluto repudio da naturalidade. Como eu, que na naturalidade e na simplicidade encontro a melhor beleza, lembraria Bisancio se não fosse esse mesmo futil Paris que, ha poucos anos, mostrou tão viris qualidades perante os seus tradicionais inimigos!

F. Mira