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Texto da entrada (ID.358)

ASSUMPTOS DO DIA

Assistencia Nacional aos Tuberculosos

A tuberculose nos quarteis

  Entre os innumeros fócos de propagação da tuberculose teem varios hygienistas incluido as casernas. Consideram elles, á primeira vista com uma certa razão, inconveniente e prejudicial, sob o ponto de vista da normal expansão e funccionamento physiologico, essa forçada accumulação de organismos, não armados ainda do maximo de resistencia á influencia deleteria exterior, em espaços relativamente acanhados e sem a requerida cubagem de ar e de luz. Suppomos que se enganam.

  Está por fazer, pelo menos entre nós, o trabalho estatistico que permittirá com exactidão determinar até que ponto a nocividade do meio militar póde deprimentemente in[f]luir no estado physico d’aquelles que a sorte atira para o penoso serviço do quartel. A julgar, porém, por alguns dados escassos, que sobre o assumpto tivémos a curiosidade de colher; a avaliar pela selecção que preside ao recrutamento, e pelas condições que de ordinario acompanham e seguem aquelle serviço, quer-nos parecer que em parte nenhuma, a não ser na liberdade plena dos campos, póde encontrar a geração moça mais relativa immunidade contra a tuberculose, do que o regimen disciplinado e forte dos quarteis.

  As razões são obvias. Ali a predominancia da vida physica, os exercicios constantes, as manobras, os manejos de armas, o peso do equipamento e do armamento, os serviços de fachina, a promptidão e rapidez nos movimentos, a celeridade que instinctivamente impõe o commando vibrante da corneta e do clarim, são outros tantos viris estimulos ao enrijamento do organismo, á tonificação muscular. Como as combustões organicas são grandes, cresce parallelamente o appetite, na correspondente necessidade de os reparar. D’ahi que, geralmente, o soldado alimenta-se bem. E a esta hyperactividade funccional da vida physica junta-se ainda, pelos folgados episodios da camaradagem, da vida em commun, a despreoccupação, a leveza, a alegria, a mais favoravel disposição moral.

  Assim, o homem rude da aldeia, o camponio, quando chamado a prestar o seu tributo de sangue, não tem por que receiar [sic] que, em a sua nova condição de vida, quaesquer influencias morbidas vão minar-lhe os orgãos ou comprometter-lhe a saude. Se não é um tuberculoso hereditario, nenhumas probabilidades tem de inoculação d’esse bacillo, pois vae viver, em grande promiscuidade, é certo, mas com homens que teem a carta de sanidade apurada a limpo pelas respectivas juntas de saude. E, na vida militar, o seu já forte arcaboiço, em vez de deperecer, deve ainda mais fortalecer se; porquanto o homem do campo, se no quartel passou a viver em maior sujeição, tambem compensadoramente se alimenta melhor. Que não tem, na abundancia, no asseio, nas qualidades nutrientes, comparação a sua minguada ração de borôa e sardinha, com o rancho succolento que elle vem encontrar no quartel.

  Para os homens de baixa condição, nados e creados nas cidades, – productos frustes e doentios de accidentaes contactos com a miseria, – n’esses é que principalmente exerce uma salutar influencia, e constitue ao seu estiolamento organico a mais simples e efficaz therapeutica, o alistamento no serviço militar. Com effeito, no estado civil, esses homens arrastam de ordinario uma vida incongruente e esteril, em que cada hora é uma letra a desconto, sacada a favor da sepultura. Alimentam-se mal, quasi não vêem o sol, vivem de noite; repartem machinalmente as horas pelo lupanar, a officina e a taberna; o abuso do alcool, do fumo, do café, desequilibra os, exacerbando-lhes morbidamente a sensibilidade em detrimento da esthenia physica. São uns velhos precoces; incapazes de qualquer exforço, tudo os intimida, tudo lhes repugna. Temem o trabalho, como fogem da luz. Moralmente um crepusculo, physicamente uma ruina. E comprehende-se que magnifico, que admiravelmente bem adaptado terreno ao seu pathognomonico trabalho n’estes depauperados sêres encontra o «vírus» tuberculoso.

  Levem porém um d’estes tristes e ephemeros rapazes ao serviço militar, alistem-n’o sob uma bandeira, tirem-lhes das mãos a guitarra e dêem-lhes uma espingarda, e verão como, em poucos mezes, elle sadiamente se transforma. As madrugadas, a principio fatigantes, por fim enrijam-n’o; as correntes do ar matutino, circulando fresco no pleno arejamento da caserna, restituem-lhe ás faces a còr esvaida no crasso envenenamento das fabricas ou das viellas; come melhor, lava-se, agita-se, trabalha, ri, adquire habitos de regularidade, aprende a apreciar judiciosamente a vida. E assim, quaudo [sic] mais tarde torna ao meio seu proprio, elle parece mais novo dez annos que os seus socios antigos na parodia, os quaes vêem com espanto voltar o amigo, d’esssa caserna tão odiada, rejuvenescido, cascalheiro e forte.

  Durante a nossa passagem pelo serviço de guarnição, tivemos occasião de observar bastantes casos d’estes. Aqui mesmo em Lisboa, o fadigoso trabalho das guardas e exercicios, com todo o tempo, quasi sem descanço, é preferivel ainda assim ao estagnamento sordido em que se imbecilisa a maior parte da população civil. Mas na provincia, n’um corpo de infanteria, vimos mesmo dar-se um facto curiosissimo, o qual do modo mais eloquente demonstra a acção minimamente tonificadora da vida militar.

  Imaginem que entre o contingente de recrutas d’esse anno viera um pobre e engoiado rapaz, tristonho e macilento, o olhar sem brilho, concavo o peito, os hombros em ladeira, as pernas derreadas. Pequenino e taciturno, evitando toda a gente, passava o seu tempo na caserna invariavelmente escondido no vão da cama... por vezes a chorar. O seu modo arisco, o seu melindroso e desageitado aspecto desafiavam a primor a troça dos camaradas. Chamavam lhe elles «o contrapeso»; entornavam-lhe o rancho, batiam-lhe, de noite tiravam-lhe a roupa da cama. E o pobre rapaz, cada vez mais triste, cada vez mais exasperado, levava realmente no regimento uma vida de fazer dó. A primeira vez que foi á carreira de tiro, fez fogo a tremer. Tinha uma tosse miudita e rebelde, acordava sempre em suores. Uma tarde, na arrecadação, quiz-se matar.

  Apenas prompto da recruta, foi nomeado para destacar. A longa marcha a pé arrasou-o; baixou ao hospital. Mas tambem, logo depois, quasi milagrosamente, elle ahi entra de adquirir forças, endireitou-se, alegrou; já levava as noites de um somno, já era communicativo e trocista tambem; e tomava agora gosto pelo genero de vida que o salvára, a ponto que, ao cabo do tempo obrigado, readmittiu-se.

  Ainda é pois um dos grandes meios de vigorosação physica, e portanto uma das mais efficazes defezas contra a tuberculose, – defeza ao alcance de todos, – a vida militar. Embora a principio reaja dolorosamente, o organismo, depois de trenado [sic], agradece de modo palpavel o beneficio que d’ahi lhe resultou.

  Portanto, carinhosas mães, meticulosos paes de familia, a quem a saude e a vida de vossos filhos, – n’essa perigosa idade da adolescencia – povòa os sonhos de terrores e os dias dos cuidados, e emquanto a benemerita solicitude da Assistencia não põe á vossa disposição o complicado mechanismo da prophylaxia official, crède que não tendes a fazer senão duas coisas: – influir para que o governo faça manter nos quarteis as imprescindiveis condições hygienicas, e alistar vossos filhos n’aquelle que vos ficar mais á mão.

Abel Botelho.


Referência bibliográfica

Abel Botelho - "Assistencia Nacional aos Tuberculosos" in Diário de Notícias de 3 de Dezembro de 1900, nº. 12571, p. 1 (c. 1-2). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=358.



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