Texto sobre a instalação, na costa portuguesa, de uma estação de biologia marinha, que foi instalada no Forte de Albarquel, na barra do Sado, no Outão, qu epoderia acolher os naturalistas portugueses e estrangeiros que pretendessem estudar as espécies existentes no mar e na costa portuguesa.
O texto é escrito em Berlim, datado de 1907, por Hermano Neves, e faz referência ao Congresso Internacional de Medicina de Lisboa, ocorrido em 1906, onde ficou decidido criar esta estação marítima. É referida a Comissão organizadora da Sociedade dos Naturalistas Portugueses, com as respetivas fotografias, onde constam Bettencourt Ferreira, naturalista do Museu Bocage, Marck Athias, da Escola Médica e chefe de serviço do Instituto Bacteorológico, Artur Seabra, conservador do Museu Bocage, Celestino da Costa, médico dos hospitais, Carlos França, naturalista do Museu Bocage e chefe de serviço do Instituto Bacteorológico; Fernando Mattoso dos Santos, professor de Zoologia da Escola Politécnica.
Excertos:
“Mas a sciencia, na ancia de perscrutar as causas proximas dos phenomenos, abre dia a dia maior campo ás suas investigações, e procura trazer á luz do sol todos os mysterios, desvendar todos os segredos que nos accultam as aguas.
O mar é inexgotavel manancial para o estudo das sciencias naturaes; d’elle teem ainda muito a esperar a Biologia, a Mineralogia e a Geologia. A sciencia possue desde alguns annos um capitulo novo: a Oceanographia, e as numerosas campanhas hydrographicas dos ultimos tempos provam de sobejo a importancia que se liga a este ramos especial. Sondar o abysmo é avançar no progresso – é abrir novos horisontes ao cerebro humano. Cada nova descoberta é uma conquista brilhante cujos fructos são de incaculavel valor.
Mas se a pesquiza das aguas tem grande importancia sob o ponto de vista especulativo da sciencia, muito maior se nos afigura se a encararmos pelo lado economico. Conhecem-se actualmente cêrca de duas mil e quinhentas especies differentes de algas, grupadas em divisões, generos, familias, tribus e secções. Enquanto os sabios as classificam, o lavrador aprovaita-as como adubo precioso, e o nosso camponez do norte conhece bem a importancia do corrião, da bodelha, do verdelho, etc., debaixo do ponto de vista agricola.
Das plantas marinhas extrai-se o iodo, o bromio, o azotato de potassio, o sulfato e sodio e muitos outros productos de valor industrial consideravel. A chimica descobriu e aperfeiçoou os processos de que a industria se aproveita. Se a ichtyologia fórma um capitulo da biologia, o estudo das pescas é inseparavel do das sciencias economicas. O consumo do peixe, alimento de preciosas qualidades, é importantissimo em toda a parte, e com os progressos gigantescos das industrias, permittindo encurtar e simplificar os transportes, as populações do interior podem hoje participar com as da costa n’este banquete universal.
Possue paricularmente o nosso paiz condições materiaes que o tornam campo precioso de investigação. Banhadas pelo Atlantico, as nossas costas são extremamente ferteis em exemplares raros da fauna e da flora maritima, regiões inexploradas por investigadores de criterio seguro, não falando de algumas brilhantes tentativas de tanto maior merito, quanto são quasei eclusivamente devidas á iniciativa individual.
A nossa vegetação submarina é riquissima, explicando assim a afluencia de peixe ás nossas aguas. Todas as especies se encontram ahi representadas e prolificam sem peias, o que as grandes companhias inglezas de pesca sabem muito bem. Por isso houve quem não deixou de protestar quando há annos começaram a vir devastar-nos os fundos maritimos com os aparelhos de arrasto.
No ultimo congresso internacional de medicina, por occasião do qual Lisboa albergou grande parte da aristocracia intellectual de todos os paizes, um facto houve que bastante impressionou os naruralistas estrangeiros. – Pois quê? Em paiz de tão vastos recursos naturaes, onde o exercito da sciencia possue alguns generosos soldados, onde o mar se vem offerecer no litoral com requebros de cortezã, não existe instituição regularmente organisada que lhe invetigue os segredos, que arranque dia a dia novos cabedaes, novas riquezas para a sciencia?
Foi por isso que a secção de Anatomia, da qual faziam parte biologistas insignes como Waldeyer, Ramon y Cajal, Benda, etc., qropoz que o Congresso votasse a creação de uma Estação de biologia maritima na costa portugueza, á similhança do que teem feito as grandes nações. A idéa ficou lançada, e á frente do movimento encetado collocou-se um punhado de homens de sciencia da nossa melhor élite intellectual. A commissão immediatamente organisada sob a presidencia do professor Mattoso Santos, composta dos Drs. Carlos França, Marck Athias, Celestino da Costa, Bettencourt Ferreira e do naturalista Anthero de Seabra, reuniu pouco tempo depois para inaugurar os trabalhos de fundação.
Decidiuse que a nova estação se approximasse quanto possivel das que existem já noutros paizes. A de Nápoles é modelo de installações d’este genero. De caracter internacional, todos os governos, incluindo o nosso, se paressaram a subsidirar a obra, de fórma que em breve adquiriu o brilhantismo actual. Dirige-a o professor Dhorn, que todos os annos faz publicar nas Mitteilungen aus era biologischen Station, os resultados dos trabalhos ali executados.
É immensa a popularidade do Aquario de Napoles. Os grandes paquetes das linhas do Oriente depositam todos os annos no famoso golpho, muitos milhares de estrangeiros. Pois todos vão admirar os exemplares raros ás piscinas do Aquario, inscrevendo uma impressão no seu block-notes de touriste.
Na Italia há ainda a pequena estação de Villafranca.
Na Austria, existe a de Trieste, fundada pelo Professor Schultze, cathedratico de uma cadeira de zoologia na Universidade de Berlim.
Na Allemanha creou.se a de Heligoland, onde se estudam especialmente assumptos relativos a pescas.
Em França destacam-se, entre outras, as de Roscoft e Archadon, cujos bancos ostriferos são famosos-
A peninsula iberica não possuia um estabelecimento d’este genero!
Para estabelecer a futura estação, pensou-se n’um velho forte que existe em Albarquel, proximo da barra do Sado. É uma pequena bahia no caminho do Outão, onde vão morrer os ultimos contrafortes da serra que pelo norte domina a paizagem.
(...) Adaptar pois o forte de Albarquel ás exigencias dos estabelecimentos scientificos d’este genero, onde os estudiosos possam amplamente colher o fructo do trabalho methodico e bem orientado, seria sem duvida factor poderoso no progresso intellectual e cultural do nosso paiz. As nações estrangeiras, vendo fructificar a obra, subsidial-a-hão duplamente: concedendo-lhe determinada annuidade e enviando os seus naturalistas.
Mas a installação de apparelhos de pesca, de serviços regulares de pesquiza hydrographica, de viveiros de piscicultura, etc., exige de todos, começando naturalmente pelos oderes constituidos, especial attenção, energia e boa vontade que estou certo não há de faltar desde que a obra se popularise.
Hoje, que há no nosso paiz a febre de attrahir o movimento mundial, será para desprezar tal opportunidade?
Portugal não tem industria que mereça a pena citar ao lado das grandes nações produtoras, mas o solo é fertilissimo. Á agricultura devemos em parte o não sermos pelo mundo totalmente desconhecidos. Pois não é o vinho do Porto (embora falsificado por mil astuciosos processos) que faz na Europa com que muitos suspeitem da existencia da nossa nacionalidade?
Paiz de navegadores, foi pelo mar que abrimos novo campo á cultura humana. O mar não nos deu tudo ainda. Se pela agricultura temos motivo de existencia, o mar – único recurso da nossa população costeira – não constitue razão de importancia menor.
Conversando uma vez commigo em Berlim, dizia-me o professor Waldeyer a proposito da questão:
- É preciso que em Portugal o publico se interesse pelo facto. A idéa não é só de grande alcance scientifico, é talvez de maior alcance economico, e social. O peixe é dos melhores e mais baratos alimentos, é pois justo e natural que paiz como o seu se interesse pelos problemas palpitantes da biologia maritima, a que estão intimamente ligadas as explorações hydrographicas.
E por existirem já entre nós trabalhos de reconhecido valor scientifico que muitos honram o pai e os seus auctores, é mais essa uma razão de peso para insistir.
Ninguem desconhece as brilhantes campanhas de S. M. El-rei a bordo do seu Yacht, nem a obra do sr. capitão de fragata Baldaque da Silva, que dedicou dez annos de incançavel actividade a estudar os rios e costas de Portugal. Encontram-se registados n’um grosso volume os resultados d’esse trabalho: Estado actual das pescas em Portugal; é a única grande obra de synthese que n’este genero existe em lingua portugueza.
Outras se podiam ainda citar, se a indole d’este artigo o permittisse. Mas a sua intenção é simplesmente vulgarisar um emprehendimento dos que marcam epocha decisiva no desenvolvimento intellectual de nacionalidade como a nossa, e acompanhar de algumas palavras as photographias reproduzidas.
E para terminar: não é á sociedade de naturalistas que deve entregar-se a direção do nosso pobre aquario, que, embora pequeno, representa já esforço apreciavel em meio da indifferença que habitualmente reina entre nós? De aperfeiçoamento em aperfeiçoamento, não vejo impossibilidade de virmos a possuir instituição d’este genero que possa mostrar-se com orgulho. Aquario e jardim zoologico deviam ser, em paiz colonial e maritimo como este, duas coisas preciosas. Viremos um dia a posuil-as a sério?
Berlim, 1907.
Hermano Neves”











Hermano Neves - "O Estudo do Mar, Uma Estação Biologica na Costa de Portugal"
in Illustração Portugueza
de 19 de Agosto de 1907, nº. 78-2s, p. 238-243 (páginas completas). Disponível em linha em http://bd-divulgacaocientificaemjornais.ciuhct.org/entrada.php?id=3687.